O professor de geografia entra na classe e, sem falar nada, fixa um mapa-múndi na lousa. Inverte de propósito a posição do planisfério e coloca o Norte para baixo. Logo, um aluno corre para avisar o professor do mal-entendido. Era o que ele esperava para dar início à aula. Quem falou que o mapa está de cabeça para baixo? O mundo não é redondo? Convencer os alunos de que o planeta pode ser representado de muitas maneiras até que é fácil. Difícil é se acostumar a novas concepções do espaço. Desde criança, aprendemos que o Brasil ocupa o canto inferior esquerdo do mundo. Isso acontece porque seguimos uma projeção eurocêntrica (com a Europa no centro) da realidade, proposta por Gerhard Mercator, aquela que transforma o globo em um retângulo dividido pelo meridiano inglês de Greenwich (leia quadro). Mas esta não é a única opção. É possível projetar o Brasil “de lado”, “de ponta-cabeça”, “em cima” do Chile ou “embaixo” da Argentina. E todas são verdadeiras. Conscientes disso, estudiosos propuseram, ao longo dos anos, representações do planeta com o Brasil no centro.

O último a entrar na turma foi o administrador de empresas Stephen Kanitz, de São Paulo. Ele resolveu brincar de cartógrafo e lançou um mouse pad nacionalista em homenagem aos 500 anos do Descobrimento. Nele, um planisfério circular em que o Brasil aparece “de cabeça para baixo”. “Meu mapa tem o ineditismo de trazer o Hemisfério Sul na parte superior, colocar o Brasil no centro e seguir uma distribuição equidistante dos demais países”, diz. Segundo Kanitz, o mapa convencional traz o Norte em cima porque, na Europa, os viajantes usam a estrela polar para se localizar à noite. “No Brasil, é impossível vê-la. Deveríamos usar mapas que seguissem a direção do Cruzeiro do Sul”, diz.

Qualquer cartógrafo que se preza, no entanto, sabe que o mapa de Kanitz não tem nada de inédito. Trata-se de uma representação circular do globo, comum desde o século XVI. Navegantes faziam esse tipo de esboço colocando sua cidade no centro. No Brasil, em 1949, o cartógrafo João Soukup propôs um mapa com o centro em São Paulo, idêntico ao mouse pad recém-lançado – 52 anos antes de Kanitz proclamar seu ineditismo. Apenas uma diferença: aquele, publicado em 1949, trazia o Norte na parte superior. Ao contrário de Kanitz, Soukup fez questão de rejeitar o título de pioneiro no livro Ensaios cartográficos, de 1966. Já em 1928, W. Eickhoff e R. Langer haviam produzido um mapa semelhante para o Serviço Geográfico do Exército, dedicando o miolo ao Rio de Janeiro.

Passados mais de 70 anos da versão carioca, mapas com o Brasil no centro permanecem pouco conhecidos. “Muitas escolas ensinam geografia como se a projeção de Mercator fosse a expressão única da realidade. Os alunos não aprendem que todo mapa deixa transparecer os interesses de quem o faz”, observa Marcos Bernardino de Carvalho, professor do Departamento de Geografia da PUC de São Paulo. Em 1994, ele lançou a coleção didática Geografia, ciência do espaço, com os geógrafos Douglas Santos e Diamantino Alves Correia Pereira. No quarto volume, introduziu pela primeira vez em um livro didático um mapa nacionalista. Retangular, traz o País no centro e de ponta-cabeça. O meridiano de Brasília assume a função do meridiano de Greenwich e corta o planeta ao meio. “Embora esse mapa esteja correto, dificilmente seria aceito como imagem ideal. Afinal, não é no Brasil que estão localizados os principais centros financeiros, industriais e culturais”, diz o texto. Ainda assim, olhar para um mapa desses faz bem para a auto-estima de qualquer brasileiro. Não faz?

A europa é a lei

Foi em 1569 que o cartógrafo flamengo Gerhard Mercator propôs a projeção do globo mais difundida até hoje. Inspirado pela hegemonia européia, Mercator situou o continente no centro da carta e dedicou dois terços do plano ao Hemisfério Norte. Menos de um século após o descobrimento da América, sua projeção não delineava com exatidão os contornos do novo continente nem continha a Austrália, ainda desconhecida. Sua concepção, no entanto, serviu de base para o trabalho de todos os cartógrafos que o sucederam. E críticas não foram poupadas. O alemão Arno Peters, por exemplo, afirmava que a projeção de Mercator deforma as áreas mais próximas aos pólos. Em 1974, Peters propôs um novo planisfério, reduzindo a área da Groenlândia e concedendo proporções quase gigantescas à África, convicto de ser essa a “verdadeira” situação.