No Brasil há cerca de 600 mil homens e mulheres armados e insatisfeitos com os baixos salários. Como se não bastasse, vivem o estresse provocado pelo risco da função que exercem e estão em pé de guerra. Trata-se de um grupo duas vezes maior que todo o efetivo das Forças Armadas: são os policiais civis e militares, que cultivam o sentimento de revolta nos quartéis e delegacias de todo o País. À frente dessa tropa está uma nova espécie de sindicalista, guiado pela ideologia do aumento salarial e da unificação das polícias. São líderes de uma categoria treinada para enfrentar conflitos e estão dispostos a levar o movimento às últimas consequências. Nos dias 8 e 9 de agosto, a Confederação Nacional dos Policiais Civis reúne os dirigentes estaduais em Porto Alegre para organizar uma paralisação nacional de um dia. Em seguida, será a vez de os soldados e cabos optarem ou não pela mesma estratégia. Eles promoverão em Belo Horizonte um encontro nacional para discutir seus interesses. Um barril de pólvora onde não falta quem queira acender o pavio.

Em três meses, soldados, cabos, sargentos e até oficiais cruzaram os braços e ocuparam quartéis em Tocantins, Bahia e Alagoas contra os baixos salários. Policiais civis planejam parar no Rio Grande do Norte, Maranhão, São Paulo e Paraná. Agentes do Piauí engrossam desde quinta-feira 26 a greve dos colegas do Pará. Em Pernambuco, a greve da categoria completou quatro semanas. Há dois meses, foi criado o Fórum Nacional Permanente dos Policiais, formado por representantes de todas as polícias, inclusive a federal. O objetivo do fórum é unificar a luta por aumento salarial, estendendo-a a todo o País, e propor um novo modelo de polícia.

Líderes desse sindicalismo armado, como o vereador petista do Recife Henrique Leite, presidente do Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco, e o sargento Isidoro Santana Júnior, da Bahia, são militantes de partidos de esquerda. Com 21 anos de carreira, 18 como sargento da PM, Isidoro também é filiado ao PT e foi candidato derrotado a prefeito de Candeias, região metropolitana de Salvador. Sua prisão foi o estopim para a greve da PM baiana. Agora, Isidoro prepara-se para disputar uma vaga na Assembléia Legislativa. Henrique Leite está no segundo mandato como presidente da entidade e carrega em seu currículo, além dos cursos de direito e letras, duas greves da categoria. Uma em 1997, que durou 22 dias, e outra no ano seguinte, com 89 dias de paralisação. Casado, militou no movimento estudantil e está filiado ao PT há 16 anos. O policial vereador já foi vice-presidente da Confederação Nacional dos Policiais Civis. Hoje, a confederação é dirigida por Jânio Gandra, um contabilista e leitor de Marx, Platão, Guevara e da Bíblia. Ele coordena o Fórum Nacional dos Policiais e articula um movimento integrado por civis e militares.

Há um ano, os soldados e cabos da PM de Brasília driblaram a lei e criaram a Força Policial, um sindicato disfarçado de associação, presidido pelo cabo Aires Costa. Ele está acampado em frente ao Congresso exigindo o cumprimento da promessa de reajuste salarial feita pelo governador Joaquim Roriz (DF). Costa já foi expulso três vezes da corporação por causa da atividade sindical,mas sempre conseguiu voltar à PM por decisão judicial. Em 1998 foi candidato a deputado distrital pelo PMN. Costa defende a unificação de todas as polícias. Outros líderes, no entanto, são contra a greve. É o caso do cabo Wilson Morais, presidente da Associação Nacional dos Cabos e Soldados há dois anos. Com 47 anos, é deputado estadual pelo PSDB, eleito com 45 mil votos. Aceitou ser candidato a pedido do ex-governador Mário Covas e não se considera um sindicalista. Defende a desmilitarização da PM e é um dos poucos que não acreditam na greve como forma de pressão. Outro que virou deputado federal foi o cabo Júlio, da PM mineira, líder da primeira greve dos militares em 1997, na qual um policial foi morto. “As greves de hoje mostram que os problemas das polícias permanecem os mesmos”, dispara o deputado mineiro.

Lei específica – Enquanto a Constituição proíbe a greve e a sindicalização de militares, os policiais civis podem associar-se em sindicatos como qualquer servidor público. Mas somente uma “lei específica”, instrumento que ainda não existe, dirá se podem ou não parar suas atividades durante negociação salarial. É pela falta desse dispositivo que a Justiça tem considerado as paralisações ilegais.

Mesmo assim, o movimento grevista acontece e prolifera entre as polícias desde 1997, em todo o País. Para conter esta onda que assusta o Planalto, o governo federal reagiu. De um lado, uma medida social: criou uma linha de crédito de R$ 75 milhões com juros subsidiados para financiar moradia para os policiais em 2002. De outro, aproximou o fogo do barril de pólvora. O Ministério da Defesa, com apoio do general Alberto Cardoso, do Gabinete de Segurança Institucional, sugeriu a edição de uma polêmica medida provisória dando poder de polícia às Forças Armadas. A idéia dividiu o governo e assustou a sociedade, uma vez que o Exército, por exemplo, não está preparado para a segurança pública, e sim para a guerra. O ministro da Justiça, José Gregori, é contrário à MP, que chegou a ser considerada por muitos ato típico dos regimes de exceção. Ele considera a Constituição instrumento suficiente para que o Exército possa exercer esse poder, prendendo, inclusive, cidadãos.

Segurança foi o motivo da reunião na quinta-feira 26 entre o presidente Fernando Henrique e dez governadores. O presidente quer endurecer o jogo e pretende proibir a sindicalização de policiais civis. Sugeriu que fossem suspensas as negociações enquanto os policiais estiverem parados. A principal decisão do encontro foi a recomendação para que a Câmara e o Senado reformem, ainda este ano, os artigos sobre segurança pública na Constituição, modernizando as polícias. O Congresso Nacional patina sobre o assunto há três anos. A idéia é criar uma só polícia, desmilitarizada, com plano de carreira e salários dignos, com comando único nos Estados. Outra discussão, que divide a polícia, é partilhar o inquérito com o Ministério Público. “Os policiais não têm noção do que estão fazendo, os governantes estão com medo e a sociedade está desprotegida”, resumiu a deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), relatora do projeto que unifica as polícias. Enquanto isso, o pavio encurta.

Em São Paulo, negociação em alto nível

Florência Costa

Tudo em São Paulo, o maior Estado da Federação, adquire proporções gigantescas. Não seria diferente no caso da greve armada, que assombra o Brasil nas últimas semanas. Afinal, o aparato de segurança paulista é um verdadeiro exército: são 85 mil policiais militares e 35 mil civis, quase o dobro do efetivo das Forças Armadas da Argentina (73 mil homens). Por que até agora a paralisação fardada não atingiu São Paulo? Um dos que estão à frente do movimento reivindicatório, o coronel da reserva Pedro Rezende de Oliveira Mello, 52 anos, diretor de Assuntos Institucionais da Associação dos Oficiais da PM de São Paulo, ressalta que o alto escalão das polícias Civil e Militar, tanto da ativa quanto os da reserva, tomaram a frente da mobilização. Isso fez a diferença. Na Bahia, por exemplo, onde policiais encapuzados se aquartelaram e instalaram o caos, apenas baixas patentes lideraram o movimento.

Em São Paulo foi criada há dois meses a União das Entidades da Polícia Paulista, composta por 25 entidades da Polícia Civil e 16 da PM, entre elas a associação do coronel Mello, que reúne 8 mil associados, incluindo quase a totalidade dos oficiais da ativa. “O efeito dominó ameaça, mas estamos fazendo de tudo para que não se repitam em São Paulo as lamentáveis cenas vividas na Bahia. A insatisfação vem crescendo. Por isso, acho melhor que oficiais do comando das polícias negociem com os governadores para evitar que soldados encapuzados façam discursos”, afirma o coronel Pedro Mello.