À beira de um caixão – na verdade, só a tampa, já que o resto não coube na pequena profundidade da vala –, o ator-mirim Giovani Val, nove anos, ouve circunspecto as ordens do diretor Jacques Lagôa. “Exagera menino, cai ajoelhado e fala da mãezinha querida”, grita ele, que divide as funções com Antonino Seabra e Henrique Martins. O garoto segue as instruções à risca, contrai a face e chora, chora, depois de ter os olhos borrifados por um colírio providencial. Mas a cena se perdeu. Na hora exata da gravação, um avião sobrevoou o local. Lagôa desespera-se. A luz natural que ilumina os jazigos do Cemitério na Lapa, zona oeste de São Paulo, está minguando. Minutos depois, sem barulho, finalmente o diretor consegue terminar a cena do enterro da mãe de Julinho, personagem de Val, cujo sofrimento vai cortar o coração dos espectadores da primeira novela mexicana produzida no Brasil, chamada Pícara sonhadora. Não estranhe, o nome é este mesmo e não é nenhum palavrão como a princípio pode-se pensar. Pícara quer dizer ardilosa. Por que, então, manter o título quase igual ao espanhol? Silvio Santos, o dono do SBT, acha que é marketing puro. E é, pois antes mesmo da sua estréia prevista para agosto o folhetim já é candidato a atração cult.

Pícara sonhadora é fruto de um acordo de US$ 100 milhões feito pela emissora paulistana com a rede Televisa mexicana. O contrato dará ao SBT exclusividade no Brasil sobre todo o acervo de novelas da Televisa, durante cinco anos. Ou seja, neste período, o SBT poderá produzir com equipe e elenco brasileiros qualquer texto de propriedade dos mexicanos, antigos ou atuais. Pícara, de Abel Santa Cruz, por exemplo, foi escrita há 11 anos. Para levar a empreitada adiante, Silvio Santos contratou perto de 100 profissionais e já mandou construir uma cidade cenográfica especialmente para abrigar as novas produções. Em terras tropicais, o texto trará apenas algumas modificações. Guadalupe, o nome da protagonista, foi trocado por Milla Lopes. Mas o sobrenome Rockfield da família de ricaços se manterá. A novela, que antes se passava em Guadalajara e Cidade do México, agora tem como cenários São Paulo e Curitiba. Silvio Santos já avisou que quer “tudo igual aos mexicanos”.

Nacos de comida – Milla Lopes, a pícara, vivida por Bianca Rinaldi, é um tipo ligeiramente oportunista. Trabalha na loja de departamentos Sale’s e, sob a complacência do tio vigia noturno, dorme nas camas à venda. À noite, toma roupas “emprestadas” e tira nacos atrás de nacos das comidas expostas. Mas ela se diz honesta. Certa de que vai vencer na vida, anota tudo num caderninho prometendo um dia ressarcir o dono da loja. Silvio Santos pretende importar sem concessões o estilo exuberante e eficiente de os mexicanos fazerem novelas em larga escala e com muitos lucros. E quer que seus contratados sigam a cartilha à risca. Antes mesmo de começar a trabalhar, Lagôa foi obrigado a fazer a lição de casa. Assistiu aos 20 capítulos iniciais de 13 novelas da Televisa. “Os atores mexicanos não falam sobre sentimentos, eles mostram. Estão sempre em ação, de olho vivo, numa interpretação epidérmica, com uma grande carga emotiva”, avalia o diretor.

Exuberância – Quem está acostumado às produções globais, contudo, acha graça nos exageros dos atores, sempre embalados em figurinos, digamos, exuberantes. Humor involuntário ou não, o fato é que este tipo de novela dá lucro ao SBT. Principalmente as dubladas, pois Silvio Santos não gasta um tostão na produção e tem bons retornos de audiência. Basta prestar atenção em Rosalinda – que estreou na segunda-feira 23 –, Por teu amor, Carinha de anjo e Café com aroma de mulher, todas atingindo médias entre 11 e 16 pontos na medição do Ibope. No caso de Pícara sonhadora o investimento também é compensador. Cada capítulo está orçado em US$ 43 mil – quase metade do gasto da Rede Globo –, o elenco conta com apenas 24 atores, a maioria pouco conhecida, e só 35% das cenas são externas, o que também contribui na redução dos custos. Para completar, as novelas têm uma duração menor de 90 capítulos, impedindo, assim, as famosas “barrigas” que afugentam o espectador. No jargão televisivo, barriga é quando uma história se prolonga demais, perde o prumo e torna-se enfadonha, sem ação. Portanto, as chances de fracasso são pequenas.

Quanto ao mote, é sempre o mesmo. Mocinha pobre se apaixona por galã rico, que, para conquistá-la, se finge de pobretão. Bianca Rinaldi fará par com Petrônio Gontijo. Ele viverá o milionário charmoso Alfredo Rockfield, que passa a trabalhar na tal loja de departamentos com nome falso – Bianca e Gontijo foram escolhidos pelo próprio Silvio Santos. Na órbita dos pombinhos protagonistas, o SBT também pretende colocar coadjuvantes mais bem delineados. “A melhor forma de evitar que eles se tornem caricatos é humanizá-los”, avisa Lagôa, que terá missão difícil. Afinal, uma característica dos textos mexicanos é criar tipos sem ambiguidades e com um perfil psicológico bem raso. Os bons são bons e os maus, terríveis. Desta vez, o grande vilão será José (Victor Wagner), não por acaso pai do choroso Julinho. Haverá, porém, brechas para tipos mais histriônicos. Um deles é o detetive Telles (Miltom Levy) e seus dois auxiliares 001 (Paulo Vasconcelos) e 002 (Mauro Gorini), responsáveis pelos momentos pastelão de Pícara, criados para agradar ao público infantil. Os três usam capas e sapatos que lembram o figurino de O Máskara. Mais – ou menos – sorte teve a atriz Gigi Monteiro, que interpreta Érica. No México, sua personagem excedia em saias com rasgos enormes nas laterais. Silvio Santos quer o nome Pícara sonhadora, mas saias mostrando as pernas de jeito nenhum.