Mo fim de 2013, o governo comemorou uma ampliação do Bolsa Família que zerou o número de miseráveis cadastrados no banco de dados do programa. No mesmo ano, a presidente Dilma Rousseff (PT) anunciava que a pobreza extrema seria erradicada de alguns Estados até o fim de seu mandato, no dia 31 de dezembro 2014. No entanto, 16 meses depois do discurso, a erradicação da miséria tornou-se um sonho inalcançado, tendo aumentado o número de cidadãos vivendo com até R$ 77 por mês – valor que determina o limite da pobreza extrema. Pela primeira vez em uma década, o número de pessoas nessas condições subiu. Segundo dados atualizados na base do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2013 o Brasil ganhou mais 430 mil miseráveis em relação ao ano anterior. Pesquisadores do instituto afirmam que a informação era conhecida pela diretoria desde 22 de setembro, mas que foi mantida nos escaninhos do órgão até o resultado das eleições, tornando-se pública apenas na sexta-feira 31. Mesmo assim, sem qualquer divulgação para a imprensa, que descobriu o dado na semana passada.

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PROJETO INALCANÇADO
A presidente Dilma sonhava em erradicar a pobreza
extrema no seu governo, mas isso não vai ocorrer

O levantamento é parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), concluída em 18 de setembro. O economista Herton Carvalho era o diretor de políticas sociais do Ipea quando os resultados das análises dos dados chegaram, no dia 22 de setembro. O aumento no número de miseráveis chamou sua atenção. Em reunião, na qual estavam presentes os diretores e o presidente do instituto, Carvalho manifestou sua intenção de tornar público o fato. No entanto, apenas seu vice, o atual diretor de políticas sociais Carlos Henrique Leite Corseuil, endossou a causa. “Os outros disseram que isso poderia afetar a imagem do instituto, que o debate político estava muito acirrado e qualquer coisa lançada seria usada com má-fé. Não concordei com a postura e pedi para sair”, explica Carvalho, pernambucano de 47 anos, que continua trabalhando no Ipea, órgão do qual é pesquisador concursado. O governo defende que a variação percentual de 3,7% está dentro da margem de erro e não configura tendência. Questionado sobre esse posicionamento, Carvalho é taxativo: “Se isso é verdade, então dentro da margem de erro você não teria nenhuma alteração de 2009 para cá. Quando o dado é ruim, está dentro da margem, quando é bom, é uma conquista”.

Carvalho não foi o único a pedir exoneração do Ipea por conta da blindagem de informações. Seu colega Marcelo Medeiros entregou carta no mesmo mês de setembro pedindo para deixar o cargo de vice-coordenador de estudos de população, desenvolvimento e previdência. O motivo não foi documentado, mas o pesquisador disse a colegas estar descontente com o represamento de dados. Em outubro, Medeiros, que também é professor de sociologia na Universidade de Brasília (UnB), publicou uma pesquisa realizada com base em dados da Receita Federal. A conclusão do artigo era que o aumento de renda dos últimos anos não diminuiu o fosso que separa ricos e pobres no País, ao contrário do que aponta o histórico da Pnad. O sucesso da pesquisa foi tamanho que ela figura até agora em quinto lugar no ranking de artigos mais lidos da Social Science Research Network, rede social de artigos científicos de alto prestígio. “Aumento do poder de compra dos mais pobres não significa diminuição da desigualdade”, alfineta o pesquisador.

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Outras pesquisas independentes divulgadas antes da análise do governo já apontavam um crescimento da pobreza extrema no País. O Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) divulgou, no mês passado, um diagnóstico com base nos dados da Pnad, no qual o número de miseráveis passava de 6,1% para 6,2% da população. Para definir miséria, no entanto, o Iets usou um critério diferente do utilizado pelo governo. Segundo o instituto independente, o recorte de renda por pessoa, para ser considerado dentro do quadro de pobreza extrema, foi de até R$ 123; para o Ipea foi de R$ 77. “O valor de R$ 77 é absolutamente ridículo”, critica o diretor do Iets, Manuel Thedim. Ele defende que esse valor seria gasto apenas em alimentação. “Nos centros urbanos mais populosos, a inflação tem um efeito ainda mais devastador. Se olhar para as regiões metropolitanas, fica claro que ali a extrema pobreza está sub-representada nessas pesquisas”, defende.

O cálculo do Ipea é feito com base nos critérios traçados pelo Banco Mundial (leia quadro). Em junho deste ano, o valor que divide pobreza e miséria foi reajustado, no Brasil, de R$ 70 para R$ 77. O valor original – de US$ 1,25 por dia – é a média de renda entre as pessoas mais pobres dos 15 países mais pobres entre os 130 analisados pela organização. Para calcular a cesta que compõe o mínimo necessário à sobrevivência, o Banco analisa o preço de 100 produtos de consumo básico domiciliar em todas as nações participantes. A aplicação da metodologia intitulada PPC (Paridade do Poder de Compra) serve para medir a pobreza nas diferentes regiões tendo por base um parâmetro comum, o que garante que a cesta de alimentos comprada em todas as nações seja a mesma. Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome explica que “a conversão de tal parâmetro para valores em reais não é realizada pela simples adoção da taxa de câmbio”. A conversão da moeda é um elemento importante do cálculo, mas ele depende também dos valores dos produtos em cada país.

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O diretor do Iets, Thedim, alerta para o fato de que a miséria foi reduzida no Norte e no Nordeste do Brasil, mas que as regiões que concentram maiores percentuais do PIB nacional registraram aumento. Ele explica que isso ocorre porque essas áreas – Sul, Sudeste e Centro-Oeste – sofrem maior influência da diminuição do crescimento econômico do País. Ele ainda faz uma última cartada contra o valor estabelecido pelo governo para se enquadrar alguém em situação de extrema pobreza: “Quanto mais baixa a linha de limite da miséria, menos gente miserável se diz ter”.

O economista José Eustáquio Alves, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), explica que o problema pode ser resolvido com um reajuste no valor pago aos contemplados pelo Bolsa Família de R$ 77 para R$ 100: “Se o governo transferir esse dinheiro para a população mais pobre, consegue-se resolver, mas a questão é que estamos enfrentando um problema fiscal”. Alves se refere ao déficit primário recorde de R$ 25,4 bilhões registrado em setembro. Para traduzir o economês, ele explica que vivemos uma paralisia financeira: o brasileiro médio vai ficar mais pobre em 2014 porque a população cresce a um ritmo mais alto que o PIB, então haverá redução da renda per capita. O economista conclui lembrando que os dados divulgados pelo Ipea são referentes a 2013 e bate o martelo: “Se em 2013 se constatou isso, em 2014 deve piorar”.

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Foto: CELSO JUNIOR/AE