David Mercado/Reuters
Vargas Llosa: personagem fictícia para narrar um reino de terror

Muitos anos depois, quando teve de renunciar à Presidência da República Dominicana, o doutor Joaquín Balaguer haveria de se lembrar daquele dia em que o generalíssimo Rafael Leonidas Trujillo Molina lhe perguntara se realmente acreditava que Deus tinha dado a ele, o Benfeitor da Pátria, a missão de salvar o país. Afinal, era essa tese que Balaguer sustentava no seu panegírico Deus e Trujillo: uma interpretação realista. “As decisões divinas são inelutáveis”, respondeu, em unção, o doutor Balaguer. Na noite calorenta de 30 de maio de 1961, poucos meses depois daquele encontro, Trujillo tombaria crivado de balas disparadas por antigos partidários quando viajava no seu Chevrolet Belair azul-claro numa estrada nos arredores de Ciudad Trujillo, como então se chamava São Domingos, a capital dominicana. Culminava assim uma conspiração que, com o velado apoio de Tio Sam, antigo aliado do tirano, punha fim aos turbulentos anos da era Trujillo. E Balaguer, o franzino presidente-fantoche, o único homem em quem o ditador confiava, deixou os herdeiros do Pai da Pátria de mãos livres para caçar os assassinos. Meses depois, o presidente convenceria a família do generalíssimo a deixar o país dando início, assim, a uma maquiavélica transição à democracia. A história dessa estranha conspiração que matou Trujillo, um tenebroso e hoje quase esquecido déspota caribenho, que governou a República Dominicana entre 1930 e 1961 como se fosse sua fazenda particular, é agora magistralmente contada em A festa do Bode (Siciliano, 456 págs., R$ 37), o mais recente romance do consagrado escritor peruano Mario Vargas Llosa. Bode, no caso, era um dos apelidos de Trujillo.

O livro se desenvolve através da história de uma personagem fictícia, Urania Cabral, filha de um prócer do regime que caiu em desgraça. Aos 14 anos, ela abandona a República Dominicana jurando nunca mais lá pôr os pés e levando consigo um terrível segredo. Mas retorna muitos anos depois para rever o pai à beira da morte. Através da narrativa de Urania, Vargas Llosa pinta um retrato sem retoques daquela que foi uma das mais corruptas e truculentas ditaduras da América Latina. Depois da ocupação americana que durou de 1916 a 1924, a República Dominicana foi moldada à imagem e semelhança do generalíssimo, um chefe da Guarda Nacional que se tornaria ditador imposto pelos Estados Unidos. Em três décadas de poder absoluto, nem sempre exercido diretamente, Trujillo se transformaria literalmente em “dono” do país. Durante seu reinado, quase 70% da terra cultivável e 90% da indústria dominicana pertenciam à sua família. O culto à personalidade de Trujillo – arquétipo de muitos “pais da pátria” do continente que vieram depois – era de deixar Stálin ou Mao vermelhos de inveja. Estátuas de bronze espalhavam-se pela República Dominicana. Todos os esportes eram dedicados ao Pai da Nova Pátria e a maioria das residências ostentava tabuletas com a frase: “Nesta casa Trujillo é o chefe.” No “Ano do Benfeitor”, em 1954, o ditador montou uma Exposição da Paz e da Fraternidade do Mundo Livre, que custou aos cofres dominicanos a bagatela de US$ 40 milhões, nada menos do que um terço do orçamento anual do país à época.

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O Belair perfurado de balas e o ditador: luxo, perfume, uniformes vistosos e sexo com as mulheres de seus ministros

Dono de um olhar que intimidava seus interlocutores, Trujillo gostava de parecer refinado, elegante e respeitável. Vaidoso, o ditador de bigodinho à Adolf Hitler vestia-se como se fosse um Napoleão Bonaparte, fazia massagens e perfumava-se. Mas o tirano, a cujos desmandos o Grande Irmão do Norte e a Igreja Católica fechavam os olhos em nome da cruzada anticomunista, parecia ser a moderna encarnação de Calígula, o desvairado e cruel imperador romano que chegou a nomear seu cavalo ao Senado. Trujillo era um devasso sexual, um assassino frio e inescrupuloso que via conspiração por todos os lados. O último chefe do SIM – serviço secreto do regime –, Johnny Abbés García, um estafeta feito coronel pelo generalíssimo, personificava à perfeição a vilania do trujilismo. Como a revelar essa podridão moral por trás de toda pompa e circunstância, o velho caudilho, que jamais suava, no final da vida teve de suportar a humilhação de sofrer de incontinência urinária provocada por uma doença na próstata. Um contratempo que, de qualquer forma, não tiraria seu apetite insaciável de machão latino, dormindo com as mulheres de seus colaboradores, todos “honrados” com tamanha deferência do “Pai da Pátria Nova”.

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Em três décadas de poder, ele se tornou dono de 70% das terras e 90% das indústrias

Mas um outro personagem igualmente enigmático no drama histórico dominicano é revelado pela vigorosa pena de Vargas Llosa: Joaquín Balaguer, hoje com 94 anos e ainda uma figura política influente na vida política daquele país caribenho. Numa das passagens mais impressionantes de A festa do Bode, Trujillo tenta sondar as motivações mais profundas da dedicação canina de seu protegido. “Há algo de desumano em você (…). Não tem os apetites naturais dos homens. Que eu saiba, você não gosta de mulheres nem de rapazes. (…) Não bebe, não fuma, não corre atrás das saias, nem do dinheiro, nem do poder. Você é assim mesmo? Ou essa conduta é uma estratégia com um desígnio secreto?” Ao que Balaguer respondeu: “Desde que conheci Sua Excelência, naquela manhã de abril de 1930, meu único vício foi servi-lo. Desde aquele momento, soube que, servindo Trujillo, serviria meu país. Isso enriqueceu minha vida mais do que poderia fazer uma mulher, o dinheiro ou o poder.” O doutor Balaguer, mostra Vargas Llosa, pertence à categoria daqueles que nasceram para um destino especial.


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