O País sem memória tem muito a agradecer a dois não desmemoriados: o músico e instrumentista Jacob do Bandolim (fácil saber em qual instrumento era exímio se ouvirmos “Noites Cariocas”) e o ator e dramaturgo Sergio Britto (basta a referência à sua genialidade no Teatro dos Sete e não se precisa dizer mais nada). O muito obrigado dessa e das novas gerações de brasileiros a Jacob do Bandolim e a Sergio Britto dá-se em três patamares – o primeiro deve-se ao fato de eles terem sido os excelentes artistas que foram; o segundo é por terem guardado documentos, reportagens, textos, cartas, elogios e críticas, quase tudo enfim de suas próprias produções; o terceiro patamar do agradecimento é porque Sergio e Jacob também organizaram arquivos reunindo o que de melhor outros artistas produziram – ou seja, exerceram no campo da cultura a função de memorialistas de suas épocas. Jacob do Bandolim nasceu em 1918 e morreu em 1969, Sergio Britto viveu de 1923 a 2011. Eles foram verdadeiros historiadores.

E agora disponibiliza-se na internet (por iniciativa de familiares e amigos) os seus arquivos digitalizados.
O Brasil herda de Jacob cerca de 5,4 mil arquivos de áudio e aproximadamente 1,6 mil documentos pessoais. Dois fatos curiosos: ele começou o seu trabalho em 1955 quando comprou alguns gravadores de fita cassete (tais gravadores e fitas, por si só, já são raridades) e os carregava para onde ia, entrevistando outros artistas. Mais: gravou programas da chamada “era de ouro” das rádios Mayrink Veiga e Nacional. Mais ainda: enveredou por outras áreas e nos deixou gravada na voz do locutor Jorge Cury a transmissão do jogo que deu à Seleção Brasileira de futebol, em 1958, o primeiro título de campeã mundial (Brasil 5, Suécia 2). Extremamente vaidoso e orgulhoso de seus choros no bandolim (e com motivos de sobra porque ninguém jamais executou, por exemplo, “Vibrações” como ele), Jacob deixou registros de sua intolerância com a influência de ritmos americanos (sobretudo o jazz) na MPB. Só cometeu um pecado: não nos legou sequer uma imagem sua em movimento. Idêntico valor cultural, histórico e sociológico tem o acervo de Sergio Britto, também agora à disposição na internet: cerca de 2,5 mil fotografias, diários de viagens e 40 robustas pastas com críticas, elogios e reportagens sobre o seu trabalho e o de companheiros de palco e televisão – Fernanda Montenegro dizia que, mais do que ela mesma, era Sergio quem sabia de sua vida. Destaque, em meio ao que ele documentou, para a história do Teatro dos Doze (1949), Teatro dos Sete (1959) e Teatro dos Quatro (1978). Talentosos artistas, por vezes, não desviam o olhar de seus próprios umbigos – o que não é defeito, é só característica. Jacob e Sergio Britto olharam para todos os lados.

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O compositor Roberto Martins é autor de uma das mais espirituosas marchinhas que o Estado Novo de Getúlio Vargas censurou, que a filha de Getúlio mandou liberar e que ele próprio andava assobiando pelo Catete: “Lá vem o cordão dos puxa saco/ dando vivas aos seus maiorais/ quem está na frente vai ficando para trás/ e o cordão dos puxa saco cada vez aumenta mais”. Roberto Martins era escrivão da polícia porque não dava para viver de música, e conta que teve de interferir certa vez para que um delegado soltasse o compositor Ataulfo Alves, preso porque fora visto à noite carregando um violão. O delegado carimbava o violão com a pecha de “instrumento de vagabundo”. Hoje tudo mudou. Conta-se aqui essa história para informar que também está na internet um competente trabalho que traz a trajetória desse instrumento: o Acervo Digital do Violão Brasileiro.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ