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Lançado pelo governo federal em 2007, o programa Olhar Brasil tem como meta fornecer consultas oftalmológicas e óculos de graça para 44 milhões de pessoas. É uma fórmula encontrada para atender a população na periferia e os alunos do ensino fundamental da rede pública, a fim de reduzir a evasão escolar. No ano passado, vários Estados começaram a deslanchar esse projeto. No entanto, o Olhar Brasil pode tornar-se um fiasco. ISTOÉ ouviu dois técnicos do programa que denunciaram irregularidades na aplicação do dinheiro público destinado ao projeto – R$ 323 milhões a serem repassados aos Estados que aderirem à iniciativa. Os técnicos dizem que no Distrito Federal, na Bahia e na Paraíba, especialmente em cidades menores, as consultas são muito rápidas, os exames superficiais  e os óculos receitados até para quem não precisa. Além disso, não são feitas as fichas de anamnese – o registro do histórico de saúde contado pelo paciente durante a consulta para que sejam conhecidas as características do caso e se possa acompanhar a sua evolução. Os problemas mais graves foram detectados na Paraíba, onde o programa começou. “Tem exame que foi feito em 15 segundos”, diz um dos técnicos do Olhar Brasil. “O programa é uma linha de produção sem controle.” De fato, falta verificação de qualidade e quantidade. Uma das médicas responsáveis por esse atendimento na região, Maria Carmen Rodrigues, por exemplo, diz que chegou a atender em um único dia 128 pacientes no município de Caaporã. “Foi a cidade onde houve menos atendimentos”, afirma Maria Carmen. “O pessoal da Secretaria (de Saúde) informou que nós fizemos muito pouco.” A médica admite a existência de colegas que atendem ainda mais pessoas em um só dia. É preciso registrar que examinar 128 pacientes em um dia restringe o tempo de consulta a pouco mais de três minutos por indivíduo. Isso se o médico trabalhar oito horas corridas, sem pausa nem para um cafezinho.

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ERRO
Maria Carmen(de branco) indicou lentes para paciente que não tinha nenhum grau de alteração de visão, como mostra receita abaixo

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A médica Maria Carmen não vê problemas nessa conduta. “O exame oftalmológico é um examezinho que quando você senta já vê os problemas de visão. Não precisa de muito tempo”, justifica. Ela confirma que não foram feitas as fichas com o histórico de cada paciente. “É uma anamnese oral: na medida em que vou fazendo o exame, vou conversando com o paciente”. Oftalmologistas renomados consideram impossível fazer uma boa análise da saúde ocular em um encontro tão breve. “É inviável. Principalmente no caso das crianças, é necessário avaliar sua visão antes e depois de dilatar a pupila para aferir direito o grau de correção”, diz o oftalmologista Cláudio Lottenberg, da clínica Lotten Eyes, de São Paulo, e presidente do Hospital Israelita Albert Einstein. No programa, isso não é feito. Há mais distorções. ISTOÉ obteve prescrições de lentes assinadas por Maria Carmen para pacientes sem problemas na visão. Isso pode ser observado na receita em que consta apenas a sigla PL, que quer dizer lente plana e sem nenhum grau de correção (leia fac-símile do documento acima). “Óculos para PL nos dois olhos? Isso foi feito por mim? Não passo óculos para PL”, disse à ISTOÉ Maria Carmen, mostrando surpresa. Segundo os técnicos do programa, os médicos colocam servidores para preencher as fichas de prescrição de lentes, tal a velocidade dos atendimentos. Isso pode ser comprovado pelos diferentes tipos de letras nas fichas. Vê-se claramente que o médico só assina a ficha. ISTOÉ também teve acesso a fichas assinadas por outros médicos. Elas são usadas para comprovar a quantidade de indivíduos examinados por dia. No dia 13 de julho passado, o médico Eugênio Francisco de Almeida atendeu 97 pacientes em Lucena (PB) pelo programa Olhar Brasil. Na residência dele, ninguém atendeu o telefone nos últimos dias. Existe pelo menos um motivo para tantos atendimentos. Os médicos do Olhar Brasil são pagos pelo número de consultas. O governo federal repassa R$ 14,29 ao médico por indivíduo atendido e o Estado entra com uma contrapartida de R$ 10, somando R$ 24,29 por paciente. Assim, um médico que atende  128 pessoas ganha mais de R$ 3 mil por  dia ou R$ 60 mil mensais. Procurada para falar sobre os problemas do Olhar Brasil, a Secretaria de Saúde da Paraíba sugeriu que ISTOÉ buscasse a gerente de Atenção Básica da Saúde no Estado, Niedja Rodrigues. Ela diz que acha normal tudo o que acontece no programa. “O Olhar Brasil é emergencial, a gente não faz triagem”, disse Niedja, ao ser questionada sobre a inexistência de ficha de anamnese. Ela não vê problema no fato de os oftalmologistas atenderem mais de 100 pessoas num dia. “Cem consultas não é muito. Para você ter uma ideia, não gastei dez minutos para fazer exame numa clínica particular.” Niedja também considera natural que os médicos não dilatem a pupila. “O problema é tão sério e o diagnóstico tão fácil que não necessita nem de colírio.” A gerente não tem o controle total do programa no Estado e não sabe se médicos estão receitando óculos para pessoas sem problemas de visão para aumentar seus ganhos. O desperdício de recursos é ainda maior. Segundo os técnicos do programa, os especialistas do Olhar Brasil na Paraíba não estão medindo a pressão intraocular dos pacientes, apesar de terem à sua disposição os aparelhos usados para fazer esse exame – os tonômetros.

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A medida da pressão intraocular é um dos testes para avaliar o risco de glaucoma, doença que representa uma das principais causas de cegueira irreversível no mundo. Seu diagnóstico também considera o aspecto do disco óptico (a porção do nervo óptico visível ao exame de fundo de olho) e o resultado do teste de campo visual. Especialistas em visão criticam a forma como o programa está sendo executado. Para Ricardo Bretas, do Conselho Mundial de Optometria, atender mais de 100 pacientes num dia é um absurdo. “Uma boa consulta tem 21 etapas e isso consome cerca de 30 minutos. Nenhuma delas é dispensável.” Ele desaprova os especialistas que fazem as consultas-relâmpago. “Isso é uma forma de tirar dinheiro do governo federal.” Na opinião de Bretas, o governo terá de refazer os exames. “Muita gente vai sair daí com mais problemas de visão do que entrou, com certeza."


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