Há dez anos, o médico Valdir Amato, pesquisador da Universidade de São Paulo, dedica-se a estudar uma doença que não costuma aparecer no noticiário: a leishmaniose. É um mal que afeta mais de 50 mil brasileiros, a maioria pobres. Provocada pelo protozoário Leishmania, a enfermidade é transmitida ao homem pela picada de um mosquito infectado. Muitas vítimas ficam desfiguradas porque o parasita corrói a boca, o nariz e, às vezes, o esôfago. O protozoário também invade o sistema de defesa do organismo e atinge o pâncreas. Se a doença não é tratada, leva à morte por infecções secundárias, como pneumonia e malária.

A moléstia não é nova. Foi descrita pela primeira vez em 1903 pelo inglês William Leishman. Mas até hoje cuidar dos doentes é uma luta inglória. Os únicos remédios disponíveis foram descobertos nos anos 50. O mais eficaz, o antimônio, é aplicado em injeções que causam dores horríveis. Por sua causa, alguns doentes desenvolvem problemas no coração, nos rins e no fígado. Uma outra droga, o pentamidine, leva 8% dos pacientes à morte por ser extremamente tóxico. Além disso, pode causar a diabete como efeito colateral. E a medicação mais moderna, o ambissome, é tão cara que não chega a ser uma opção: custa US$ 5 mil (cerca de R$ 10 mil). “Não existe tratamento ideal para a leishmaniose. Precisamos de uma droga barata e que não seja tão tóxica”, diz Amato. O operário Raimundo Lima, 26 anos, morador do Rio, sofreu os efeitos colaterais dos remédios e teve de mudar de remédio para fugir das complicações no pâncreas provocadas pela primeira medicação indicada. “A doença estava bem avançada e demorei a sarar. Sei que ela pode voltar. Agora, não sinto mais nada”, conta.

A leishmaniose é uma das doenças que o mundo esqueceu. Está na lista das chamadas pragas de pobre, ao lado de tuberculose, doença do sono, malária, elefantíase e doença de Chagas. A elefantíase, por exemplo, já deixou mais de 100 mil pessoas deformadas para o resto da vida. O verme Wuchereria bancrofti entope o sistema linfático, deixando os doentes com seios, braços, pernas ou testículos gigantescos. Juntas, essas enfermidades matam cerca de 3,5 milhões de pessoas por ano no planeta – mais do que a Aids. Apesar disso, quase não existe pesquisa para descobrir remédios eficazes contra elas. “Menos de 10% das verbas para pesquisa são destinados a 90% dos problemas de saúde do mundo”, diz Louis Currat, secretário-geral do Fórum Global de Pesquisas em Saúde, ligado à Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde 1975, 1.223 novas drogas foram descobertas. Apenas 13 combatem doenças tropicais. Delas, cinco vieram da medicina veterinária. E quatro são resultado direto do investimento da indústria farmacêutica. “Ela se concentra nas áreas mais lucrativas, como dermatologia. Enquanto milhões estão morrendo de malária e tuberculose, outros milhares de pessoas podem comprar facilmente pílulas para obesidade, calvície e impotência”, critica Anne-Valerie Kaninda, da ONG Médicos sem Fronteiras, de Nova York.

Pesquisas – Em relação à malária, quase 90% dos doentes já não respondem ao tratamento com cloroquina, pirimetamina e sulfadoxina, os métodos mais baratos e eficazes. Mas tudo indica que os 300 milhões de pessoas que sofrem com a doença não terão acesso a uma nova droga tão cedo. De acordo com a fundação britânica WellcomeTrust, o investimento em pesquisa no mundo para malária é de US$ 42 por caso fatal. Para a Aids, o investimento é 80 vezes maior. O cientista Victor Nussenzweig, da New York University Medical School, sente as dificuldades na pele. Ele deixou o Brasil em 1964 e hoje é um dos mais respeitados pesquisadores de malária do mundo. “Pesquiso uma vacina para a doença há 30 anos. Quase toda a verba vem do governo americano”, diz. No Brasil, a doença avança sem parar: foram 615 mil casos em 2000 – em 1970, eram 50 mil casos. Está aumentando em média 20% por ano. “Pesquisa de Aids consegue um investimento enorme. Malária, não. É uma catástrofe”, lamenta o infectologista Marcos Boulos, da Faculdade de Medicina da USP.
 

Com a tuberculose, a situação também é crítica. A doença afeta 16 milhões de pessoas no mundo. Mesmo assim nenhum medicamento novo foi desenvolvido nos últimos 30 anos. “Precisamos de um remédio que cure a tuberculose em dois meses e que seja eficaz contra a tuberculose multirresistente”, diz Giorgio Roscigno, presidente da ONG Global Alliance for TB Drug Development. Se nenhuma droga for descoberta, 35 milhões de pessoas vão morrer de tuberculose até 2020. O grande problema é que a terapia atual deve ser seguida durante seis meses. Por isso, muitos pacientes não se tratam direito, dando origem a bacilos resistentes. Isso porque os remédios acabam atuando apenas sobre os microorganismos mais fracos, permitindo a proliferação dos mais resistentes. A tuberculose multirresistente custa a responder à medicação. Enquanto o tratamento normal custa US$ 20, para tratar a variação resistente são necessários US$ 4 mil. Para o vendedor Ricardo Veloso, 23 anos, a solução para tratar a versão resistente da doença veio do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. Ele está recebendo medicamento de graça. “Não teríamos condições de comprar os remédios”, afirma Valéria, irmã de Veloso.

Por causa do aumento da resistência dos microorganismos, é necessário descobrir novas drogas. Mas, de acordo com a entidade americana The Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, que reúne pesquisadores e empresas farmacêuticas, em 2000 havia apenas quatro remédios contra doenças tropicais em testes. Todos estão na fase inicial e foram desenvolvidos por companhias pequenas. “Ainda não há garantia de que a pesquisa do medicamento irá para frente. Se for, ela pode levar dez anos para ser concluída”, diz Carlos Morel, diretor do Programa Especial de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais (TDR), ligado à OMS. Só para comparar, estão sendo pesquisadas dez drogas para hiperatividade.

Cachorro de madame – Muitos males só ganham remédios por acidente. No início do ano, a Gilette e a Bristol-Myers Squibb lançaram o Vaniqa, um remédio que elimina pêlos faciais. O principal componente do Vaniqa é a eflornitina, um potente remédio contra a doença do sono, transmitida pela picada da mosca tsé-tsé. Depois de muitas negociações, a Bristol se comprometeu a doar 60 mil doses de eflornitina para países africanos. Outro caso é o Ivermectin, remédio feito pela Merck para acabar com vermes em cachorros. Em 1970, descobriu-se que a droga também era eficaz contra o parasita que causa oncocercose (doença que pode levar à cegueira). Em 1987, a companhia criou o Mectizan, uma pílula de US$ 1,50. Mas não havia mercado para o medicamento porque as populações atingidas eram muito pobres para comprar a novidade. A Merck decidiu fazer uma doação sem restrições: quantas doses fossem necessárias, por tempo indefinido. Especialistas dizem que isso só foi possível porque o Ivermectin, a droga dos cães, era muito lucrativa. “Se a doença não afeta populações de países ricos, temos de torcer para que dê em cachorro de madame”, ironiza Morel, do TDR.

As indústrias farmacêuticas, um dos setores que mais lucram no mundo, pararam de investir em pesquisas de doenças tropicais porque o risco é muito elevado. É difícil conseguir retorno para os acionistas. Pesquisar uma nova droga fica entre US$ 50 milhões e US$ 500 milhões. O processo, da idéia de uma droga nova até o seu desenvolvimento, pode levar até 20 anos. Entre dez mil produtos químicos sintetizados todos os anos, apenas 15 são considerados candidatos a drogas e só um efetivamente vira um remédio. Esse único remédio tem de cobrir os custos de todas as outras tentativas fracassadas. E precisa dar lucros rapidamente – antes que a patente expire e o remédio tenha de enfrentar a competição dos genéricos. “O mercado precisa ser grande o suficiente. Caso contrário, passamos a pesquisa para empresas menores”, diz Betsy Raymond, porta-voz da Pfizer. Para Luis Barreto, diretor de Assuntos de Saúde Pública Internacional da Aventis-Pasteur, é necessária uma colaboração entre os setores privado e público. “Temos um negócio. Não podemos investir apenas em remédios que não dão lucros”, justifica. A Aventis vem tentando uma estratégia de diferenciação nos preços. Na vacina contra a poliomielite, por exemplo, a empresa tira os lucros dos países desenvolvidos e distribui o medicamento a preço de custo para as nações pobres, por meio do Unicef. “As companhias produzem o que o mercado quer. Pode esperar sentado quem acha que as grandes indústrias vão investir nessas doenças. O governo é que tem de investir”, conclui James Love, diretor do Consumer Project on Technology, grupo de pesquisa em saúde pública. Colaborou Celina Côrtes, Rio de Janeiro