Uma queda de braço de R$ 4 bilhões entre geradoras e distribuidoras está tirando o sono dos acionistas e planejadores financeiros das empresas de energia, enquanto não se decide quem paga pelas consequências do erro de planejamento cometido pelo governo federal. A conta pode acabar sendo paga pelo Tesouro, leia-se cidadãos.

Ao adaptar o modelo concorrencial britânico, o governo brasileiro estabeleceu um período de transição até a plena implantação do Mercado Atacadista de Energia (MAE). Até 2002, 80% da comercialização de energia elétrica – um porcentual arbitrado sem maior fundamentação técnica – continuaria a ser fornecida através dos contratos iniciais já existentes e a preços em princípio constantes, salvo indexação e variações horárias e sazonais. Os negócios pontuais através do MAE, a preços livremente determinados pela oferta e procura, cobririam, por enquanto, só a parte da demanda que excedesse esses contratos. A partir de 2003, esses contratos iniciais seriam reduzidos em 25% ao ano até que em 2006 toda a energia passaria a ser negociada através do MAE.

Se esta crise ocorresse em 2006, nosso mercado de energia estaria numa situação muito semelhante à da Califórnia, onde o preço de mercado chegou em janeiro ao equivalente a R$ 1.066 por mWh. Repassado ao consumidor, isso significaria uma conta entre R$ 200 e R$ 300 (nove vezes a atual tarifa da Eletropaulo) para um consumo de 200 kWh. Como isso não era permitido às distribuidoras, seus prejuízos as levaram à beira da falência (foi acumulada uma defasagem de R$ 1,9 bilhão até abril, segundo a organização de consumidores Ucan). O governo da Califórnia precisou intervir no mercado e na prática o suspendeu, passando a comprar energia de geradoras através de contratos de longo prazo e a revendê-la às distribuidoras a preços mais razoáveis.

No Brasil, porém, as geradoras ainda estão obrigadas a fornecer energia sob contratos de longo prazo, cujo Anexo 5 dispõe que, se uma “situação hidrológica crítica” como a atual reduzir os volumes contratados, o gerador deve pagar para a distribuidora, ao preço do MAE, uma parte da energia não entregue.

Para um racionamento de 20%, uma fórmula complicada estabelece essa parcela em cerca de 5% do fornecimento contratado. E, nas áreas sob racionamento, o governo congelou o preço do MAE em R$ 684 por mWh, mais de 13 vezes a tarifa média dos contratos de longo prazo (cerca de R$ 50, informam analistas do setor). Segundo estimativas publicadas no jornal Valor, isso obriga as geradoras – que já perdem R$ 1,5 bilhão com a redução de 20% no consumo – a repassar até R$ 4 bilhões para as distribuidoras, mais de 60% do que restaria de suas receitas. No caso da Chesf (geradora estatal do Nordeste), com tarifa média da ordem de R$ 30, o porcentual seria de 90% a 100%.
 

O caso da Eletronorte, cuja área será submetida a racionamento de 15% a partir de 15 de julho, também é crítico. A empresa é cronicamente deficitária, pois sua tarifa média é ainda mais baixa que a da Chesf e a atual regulamentação do setor elétrico extinguiu o reembolso pelo governo dos subsídios concedidos a três empresas de alumínio e ferroligas – Albrás, Alunorte e CCM –, que consomem 24% de sua geração. É um ônus que, segundo estimativa da geradora, já totalizou mais de R$ 10 bilhões desde o início da vigência desses contratos, em 1984. O suficiente para construir outra Tucuruí.

Armadilha – As geradoras, na maioria estatais, correm o risco de quebrar justamente quando o País mais precisa de seus investimentos nessa área. Para a belga Tractebel, que controla a Gerasul (a geradora menos afetada, por enquanto, pelo racionamento e que cobre a região Sul e Mato Grosso do Sul), a conta deve ser transformada em créditos de energia para uso posterior dos distribuidores, conforme aprovado pelo extinto Comitê Executivo do MAE em fevereiro de 2000. Outras defendem que numa situação tão excepcional a vigência do Anexo 5 seja suspensa, ou que os contratos sejam anulados e refeitos, como propôs a Aneel.

As distribuidoras, porém, contam com esse dinheiro para compensar a perda de receita com a redução do consumo (que estimam em R$ 4,7 bilhões), não admitem discutir a revogação dessa cláusula e ameaçam entrar na Justiça contra o governo se ela não for cumprida. Na maioria privatizadas, muitas passaram para o controle transnacional e já estão recorrendo ao apoio de seus governos. Segundo o jornal Valor, o encarregado de negócios dos EUA no Brasil, Cristobal Orozco, marcou uma reunião com o governo brasileiro para exigir respeito aos contratos, e as embaixadas da França, Espanha e Portugal também devem se somar a essa pressão.

A câmara de gestão da crise, chefiada por Pedro Parente, tem, supostamente, poderes para suspender a aplicação do Anexo 5. Mas, além do risco de contestação jurídica, o governo teme desmoralizar de vez sua política de privatização e desregulamentação, já abalada no ano passado quando o atraso na inauguração de Angra II gerou para Furnas uma dívida de R$ 578 milhões com as distribuidoras, até hoje não paga e sem solução.

Se o governo ainda tem alguma pretensão de atrair investimento privado para a área de energia, deveria garantir o cumprimento dos contratos. Mas, se não quiser quebrar as geradoras nem transferir a conta ao consumidor, só lhe resta repassar o ônus ao Tesouro, diminuindo em pelo menos 0,3% do PIB aquele precioso superávit primário exigido pelo FMI e em nome do qual o governo cortou investimentos e tornou o racionamento inevitável. Um valor maior que o caixa de R$ 3 bilhões que a Eletrobrás acumulou com esses cortes e com o qual ela conta para retomar os investimentos indispensáveis para controlar a crise. Pareceria difícil de acreditar, se o governo federal já não tivesse demonstrado ser mestre na arte de criar armadilhas para si mesmo.