“É o lobo, é o lobo!”, grita Chapeuzinho Vermelho correndo de cinta-liga pelo quarto. O animal de cara peluda arranca a capa da menina e avança babão. Fantasia nem sempre é um processo cons-cien-te. Quando se percebe, ela já passou pela tela da mente. Olha aí a vovó saindo na floresta de camisola de renda… Viu só? Digamos que se trata de um processo ingovernável e é por isso que se torna tão perturbador. Ninguém manda, ninguém controla, ninguém julga. Até que se traduza em linguagem. Revelar ao parceiro o desejo de ter sexo com uma terceira pessoa, por exemplo, ainda que no impalpável leito dos neurônios, ganha um efeito devastador. Pelo menos é com essas lentes que o cineasta Stanley Kubrick trata o poder de uma relação imaginária em De olhos bem fechados. O personagem de Tom Cruise fica desorientado quando sua mulher, Nicole Kidman, diz que trocaria a família por uma noite de sexo com um oficial que ela viu uma vez nas férias. É um cenário claustrofóbico, onde não há espaço para que os pares desnudem seus desejos.

O olhar inquisidor de Kubrick pode ser superficial sobre a forma como os americanos lidam com as fantasias. Afinal, por lá, basta sonhar com um bombeiro para que ele vire logo um kit básico de sobrevivência erótica. A indústria da fantasia erótica movimenta US$ 3 bilhões por ano. Mas o filme de Kubrick instiga a investigação de como os povos trabalham sua imaginação na cama. “Nossa vida sexual está mais legal que a deles. Não vi nada demais”, disse Cleomar Fortes, ao sair do cinema. Ela e o marido, Josenildo Nogueira, estavam de férias no Rio de Janeiro e foram em busca de cenas picantes na sessão da tarde. Nada que se compare com as próprias aventuras. Já transaram na escada, no elevador e na praia. “Mas queremos mesmo é fazer amor na caixa- d’água. O medo que alguém nos veja é muito excitante”, conta o marido.

Quem consegue dividir fantasias comemora a turbinada no casamento. Como se os diabinhos jogassem querosene na chama. “Se o casal torna sua cama um palco de vez em quando, tem grandes chances de tornar o sexo menos formal e a relação ganha estímulo e criatividade”, diz o psicólogo de São Paulo Sérgio Fleury, terapeuta sexual há 17 anos. O economista Ronaldo Pires e sua mulher, a decoradora Mônica, juntos há 21 anos, fazem verdadeiros exercícios de interpretação. Num dos esquetes, ele assume um massagista e ela uma cliente. Em outro, ela faz a sobrinha ninfeta e ele o tio mais velho. “Depois de muito tempo, o casamento fica meio fraternal. As fantasias funcionam como aditivo”, diz ele. “Acho fundamental conquistar e ser conquistada sempre. Nossos personagens têm isso porque são pessoas que não se conhecem”, avalia Mônica.

Nos últimos anos os pares têm liberado mais o conteúdo da caixa-preta da libido. Pela avaliação de Maria Helena Garpelli, coordenadora do Instituto Kaplan, os casais já não consideram tão chocante contar as fantasias. Mas também não é uma passarela da Sapucaí. “Entre os casais mais instruídos isso não chega a surpreender, mas não são todos que ficam à vontade”, diz ela. Uma pesquisa feita pelo psicólogo Sérgio Fleury em 1995 com 72 mulheres, mostra que 59,73% delas não contam ou escolhem o que dizer aos parceiros. Segundo elas também, 65,28% dos pares não expressam as próprias fantasias. Esse cenário ainda se mantém quatro anos depois? “Eu continuo ouvindo os mesmos relatos no consultório. A inibição feminina tem a ver com a culpa e a do homem, com o mais puro machismo”, afirma ele. Entregar o conteúdo de um desejo pode ser encarado também como uma forma de mostrar muito de si ao outro. “Nós consideramos as nossas fantasias muito reveladoras. Elas são como tesouros que guardamos a sete chaves porque temos vergonha de seu conteúdo”, disse a ISTOÉ a psiquiatra e professora da Columbia University, Ethel Person, autora do livro By force of fantasy.

Como mãe – Não é preciso ajoelhar no milho se pensamentos obscenos invadem a sua noite. Nem se eles invadem sua manhã, sua tarde e também a madrugada inteira. “A fantasia é uma potencialidade humana. Não existe uma pessoa sequer que não tenha fantasias. Além disso, ela ajuda no processo criativo”, explica Zula Giglio, pesquisadora do Centro de Memória da Unicamp. Fantasia erótica é mais ou menos como mãe: todo mundo tem uma na vida, mesmo que a gente só se lembre dela em ocasiões especiais. As pesquisas cien-tíficas mostram que a partir da adolescência ninguém escapa da própria imaginação sexual. Isso a despeito de cerca de 5% de homens e mulheres terem alegado que jamais fantasiaram. Os cientistas, porém, não acreditam nisso. A maioria dos adultos lembra que a partida em seu motor erótico-imaginativo foi dada entre os 11 e 13 anos de idade. E a partir disso eles logo ganharam velocidade nesta estrada de prazeres.

Um estudo do professor Harold Leitenberg PhD, psicólogo da Universidade de Vermont, nos Estados Unidos, mostra que os adolescentes, por exemplo, quase não pensam em outra coisa. Perguntados – sem aviso prévio da pesquisa – se sexo havia cruzado suas mentes nos últimos cinco minutos, nada menos de 57% dos garotos disseram sim, enquanto 42% das meninas responderam afirmativamente. Com o passar da idade, porém, esta idéia fixa tende a enfraquecer: entre homens de 54 e 64 anos, apenas 19% disseram ter tido pensamentos sexuais; enquanto a idéia ocorrera a apenas 12% das mulheres.

Fôlego de circo – Estes números demonstram que as fantasias sexuais são muito populares. Porém, os temas costumam ser bastante brandos. Uma pessoa pode sonhar com quem desejar e imaginar qualquer cenário e ritual para esse encontro sexual. Mesmo assim, os pesquisadores verificaram que as fantasias geralmente envolvem parceiros conhecidos de quem sonha – como um ex-amor, ou o marido da vizinha, ou mesmo a balconista da farmácia. E os locais escolhidos para os encontros também costumam ser bem comuns. Já as atividades vão desde o mais açucarado dos romantismos até ginásticas capazes de deixar sem fôlego gente de circo. O casal Rose Mary e Walter Viggiano, donos de uma empresa de locação de telefones, reserva um fim de semana por mês para colocar em prática suas fantasias, mas nada mirabolante. Saem para jantar, tomam um vinho e às vezes podem ir até o motel. “Quando vejo um homem que sei que atrai a Rose, eu mostro e ela também faz a mesma coisa comigo. Isso vai animando a gente, mas quando estamos na cama somos só nós dois”, garante Walter. O detalhe mais picante fica por conta de Rose que estimula o marido a assistir a filmes de sua musa Sharon Stone. “Assim, quem sabe sobra uma rapinha para mim”, brinca ela.

Máscaras e uivos – Os estudiosos da sexualidade só não chegam a um consenso se a fantasia deve ou não ser compartilhada. O neurologista gaúcho Martin Pörtner, especializado em impotência masculina, acha o fim da picada o casal praticar um raio X dos delírios eróticos. “Quanto menos falar, melhor. Tem dee guardar uma pitada de segredo. Os parceiros descobrem as fantasias uns dos outros na cama. Se você dá um tranco e o outro geme, você já sabe o que é que agrada”, diz ele. “A melhor fantasia é o mistério. A linguagem dos sussurros, dos toques. Esse negócio de ‘vai mais para direita, agora coloca a máscara e uiva’, não dá”, diz ele. A médica Nilva Pereira Ferreira, coordenadora do Ambulatório de Sexologia do Hospital da Mulher, em Campinas, também estabelece restrições. “Nossa geração não tem o preparo para assumir esse risco. É preciso muita cumplicidade entre os casais para que ela não se torne uma ameaça”, diz. E, é claro, não faltam representantes da onda “vamos liberar” antes que seja tarde. “Não falar pode gerar uma bola-de-neve. Um casal sem fantasias vai gradualmente ficando sem desejo, sem excitação e, finalmente, sem sexo”, defende Fleury.

De Carmem Miranda – De quase todos os especialistas, o conselho é sempre o mesmo. Se é para se vestir de Carmem Miranda, que os dois caiam no samba. E, se a vontade for colocar mestre-sala e porta-bandeira na cama, é preciso muita maturidade para a relação não sair do ritmo. “Muitos casais nos procuram para superar a crise gerada pela realização de uma fantasia. A mais comum é a inserção de uma terceira pessoa no relacionamento”, conta o sexólogo, Oswaldo Rodrigues, do Instituto Paulista de Sexualidade. O autor teatral Marcos Cesana e sua mulher, a jornalista Mercedes, brincam muito com o objeto de desejo de cada um. Ele diz que adoraria ter uma mulata na cama. Ela sonha com um homem de corpo perfeito. “Ela sabe minhas fantasias e eu as dela. Mas não sei como seria ter outra pessoa transando com a gente”, diz. “Mas se ela acordasse um dia e me dissesse que sonhou ter transado com outro cara eu ia perguntar: foi bom pra você?”

Com mais quatro – Nenhum casal, contudo, está livre de viver esse conflito. O psicanalista austríaco Otto Kern-berg em seu livro Psicopatologia das relações amorosas é categórico: um casal sempre divide a cama com mais quatro pessoas. São os rivais e os tipos ideais de cada par. Diante do inevitável, Kernberg alerta que a fantasia deve ir para o baú quando resulta em dor física ou emocional. A agressividade pode ser usada como estímulo, mas o bombardeio contínuo desse modelo mostra que o casal tem dificuldades em tornar sua relação mais maleável. O que poderia ser um acessório criativo se transforma em outra fórmula capaz de levar o casamento à rotina só que no patamar das plumas e dos chicotinhos. A secretária Lívia Cristina Grunig, 23 anos, chegou nesse limite com o ex-marido. “A gente tinha muita liberdade. Nada mais nos chocava”, lembra. Mesmo assim o casamento naufragou. “O problema é que a fantasia dele se deslocou para outro lugar. Como no meu escritório somos poucas mulheres, ele só ficava me imaginando com outros homens. O ciúme dele foi destrutivo.”

Os psicólogos por muito tempo consideraram fantasias sexuais como algo vergonhoso. Tanto que até o pai da psicanálise, Sigmund Freud, em 1908 declarou que “uma pessoa feliz nunca fantasia. Somente os insatisfeitos fantasiam”. Seus discípulos transformaram a afirmação naquilo que ficaria conhecida mais tarde como a “teoria da deficiência”. “As pessoas ainda acreditam que fantasias são compensações para falta de oportunidades sexuais”, diz o professor Harold Leitenberg PhD – psicólogo da Universidade de Vermont. Essa seria uma das razões por que as pesquisas mostram que um entre quatro entrevistados tem fortes sentimentos de culpa por suas fantasias. “A maioria dessas pessoas diz que sente vergonha por fantasiar com outras pessoas, enquanto mantém relações sexuais com seus parceiros”, diz Leitenberg. Mesmo entre o chamado grupo dos “aventureiros sexuais”, como os estudantes universitários americanos, cerca de 22% das mulheres e 8% dos homens afirmam que tentam reprimir suas fantasias.

Pirâmide sexual – Existem aqueles que também acreditam que as fantasias sexuais não condizem com sua ideologia ou posição social. Por exemplo: entre os executivos das 500 maiores companhias do ranking da revista Fortune, a maioria de 90% diz que fantasias sexuais são contrárias a suas crenças políticas. A Mistress Alexandra – uma dominadora sádica profissional, 25 anos, atende apenas altos executivos dessas mesmas empresas no clube Cat-9 House of Domination, em Nova York. “Em geral, meus clientes têm um perfil fixo: são da classe alta, estão na faixa etária entre 35 e 65 anos e ocupam cargos muito altos nas hierarquias das empresas onde trabalham. Todos eles são dominantes na profissão em suas vidas profissionais e assim, ocasionalmente, precisam escapar para um mundo de fantasia. De vez em quando eles querem dar vazão a suas fantasias sexuais, que geralmente envolvem humilhação e desejos masoquistas”, garante Alexandra a ISTOÉ.

Delírio com costelas – Não dá para afirmar que Adão sonhava com mulheres comendo maçã e rolando na relva nem que Eva delirasse com costelas. Mas que depois do despejo do Paraíso a civilização aprendeu a forma de se conectar com essa história em quadrinhos interior, ah, isso aprendeu. A partir daí, o quanto a cultura de um povo e a fantasia sexual interagem é difícil medir. Ainda mais com as diferenças evidentes entre Oriente e Ocidente. No Japão, por exemplo, os casais de namorados não se tocam e muito menos se beijam em público, apesar de o país ter uma cultura erótica milenar. Até hoje resistem manuais e ilustrações de sexo explícito, mas só como documentação. Atualmente, nos filmes pornôs, mangás, revistas e fotos, as genitálias estão sempre escondidas. “Mas essa aparente frie-za esconde um mundo de fantasias e perversões”, explica o antropólogo Fernando de Tacca, que passou dois anos em Osaka estudando os livros e as fotos eróticas. “Até metade do século XIX quando começa a vigorar a moral vitoriana, o erotismo no Japão não tinha a conotação de pornografia”, completa. A única coisa que não mudou é o espaço da mulher nesse tatame. Para o japonês não existe fantasia sem uma garota subserviente, esteja ela vestida de quimono ou, particularmente, de colegial.

No caminho das índias – Os portugueses sonhavam mesmo era com umas peladonas. E se deram bem. Embarcavam nas caravelas achando, por exemplo, que seriam conduzidos por Vênus até a Ilha do Amor, um oásis cheio de mulheres belas. Deram de cara com as índias. Na Europa do século XIX foram os maestros que exerceram uma especial atração nas mulheres. Eles tinham o controle sobre a música que despertava emoções inconfessáveis. Era um poder e tanto para uma sociedade estrangulada por espartilhos e onde sexo era uma prática controlada pelas rígidas regras puritanas. Enquanto elas projetavam seus desejos pelos donos da batuta, os homens deliravam com o formato das unhas e o tom dos dentes, únicas partes visíveis dos modelitos de então. Nesse universo de esconde-esconde, o lançamento da máquina Singer com pedais em 1853, por incrível que pareça, se transformou num instrumento de fantasia poderoso. Os cavalheiros viajavam com as coxas encobertas pelas saias longas que roçavam uma na outra, embaladas pelo vaivém do pé.

Como hoje dá para se ver tanta coisa antes de chegar ao pé, as fantasias também foram evoluindo. “Hoje transar em avião e no elevador é menos uma fantasia que uma possibilidade”, avalia Maria Helena Garpelli. Nos consultórios do instituto Kaplan, ela atenta para um novo elemento importante nos cenários de sedução: a tecnologia. “Os casais gostariam de filmar a própria transa sem que um dos pares saiba”, conta. Também vale contracenar com a Internet. Com um teclado na mão e sem a censura do computador, qualquer papel é possível. Cada geração tem a máquina Singer que cabe em sua mente.