Poucas coisas mexem tanto com os sentimentos dos povos ibéricos quanto o mar. Foi por ele que seus reis de outrora alcançaram o poder e a riqueza. Ironicamente, foi também do mar que veio a decadência, com a avassaladora supremacia dos eternos rivais ingleses. Curiosamente, apesar desta paixão pela navegação e pelos mistérios dos oceanos, são raras as obras ibéricas e, em particular, espanholas que têm no mar o personagem principal. Algumas tentativas de resgatar a antiga paixão soaram falsas, pastiches de algo cujo manejo ficou esquecido no tempo. É o caso do recém-lançado A carta esférica, do espanhol Arturo Pérez-Reverte (Companhia das Letras, 536 págs., R$ 34,50). Trabalhado como um típico romance noir, o livro parte de um enredo minúsculo, no qual o oficial da Marinha Mercante Manuel Coy, punido por um erro que alega não ter sido seu, mas do seu superior, amarga em terra a suspensão da autorização para navegar por dois anos. Comprovando a velha tese das vovós, de que o ócio é a mãe de todos os vícios, ele acaba se envolvendo numa trama canhestra, atrás de um misterioso navio espanhol afundado em algum lugar da costa espanhola.

Os personagens de Pérez-Reverte são tão óbvios quanto caricatos. Não é casual a constante citação do pernóstico Tintin – o herói francês dos quadrinhos criado por Hergé – e seus colegas de aventuras colonialistas. É quase automática a associação dos perfis dos vilões de A carta esférica com os que insistem em atrapalhar os planos de exploração do repórter intrometido de topete ruivo. Ali está o malvadíssimo caçador de tesouros que, tendo como assecla um ex-torturador argentino, inferniza a vida do herói ingênuo, que só pensa no melhor jeito de levar para a cama mais próxima a loira misteriosa que o fez meter-se na estranha empreitada. Loiras, quase toda a literatura confirma, são sempre um perigo para os homens de bem. A carta esférica seria uma leitura despretensiosa para uma noite de chuva, se o autor não insistisse em entupir o texto com tantas e tão minuciosas citações técnicas que acabam com a paciência de qualquer um. A menos, claro, que o leitor já tenha vestido uma farda branca e cantado: “Qual cisne branco em noite de lua…”


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