Agatha Christie estava limpando o quarto quando pensou pela primeira vez em Hercule Poirot. “Ele seria meticuloso, muito organizado. Um homenzinho metódico”, escreveu a autora sobre a invenção de seu personagem. A partir dali, o pequeno ex-investigador da Scotland Yard seguiria resolvendo os mais impressionantes casos da escritora inglesa que ultrapassou a marca de dois bilhões de volumes vendidos no mundo, sem contar as traduções. Como costuma acontecer com os detetives dos romances policiais, Poirot teve uma vida interessantíssima, encerrada no final dos anos 1930 com sua morte no livro traduzido para o português como “Cai o Pano” (“Courtain”), só lançado em 1975, pouco antes de a autora morrer.

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FINAL
Agatha Christie havia encerrado a carreira de Poirot em
livro publicado às vésperas de sua morte

Depois de uma longa negociação com o neto de Agatha Christie, Mathew Prichard, e a HarperCollins, casa editorial da autora, a escritora inglesa Sophie Hannah traz o vaidoso homenzinho de volta à vida com “Os Crimes do Monograma” (“The Monogram Murders”), um thriller perfeitamente no estilo e no tom da Rainha do Crime, que a também poeta – finalista do Prêmio T. S. Elliot – lê desde os 13 anos. O livro de Sophie Hannah (que na edição brasileira tem o nome de Agatha Christie estampado quase no dobro do tamanho do seu) não é o primeiro a recriar um personagem célebre de autor já morto. Detetives quase tão ou mais conhecidos que o investigador belga– James Bond e Sherlock Holmes, por exemplo – têm até hoje suas sagas continuadas pelas mãos de novos escritores e roteiristas, para a alegria de fãs e o engrossamento da renda sobre os direitos autorais, que no caso de Poirot ficam para Mathew Prichard, sorridente em todas as imagens de divulgação do lançamento mundial do novo mistério. Mas poucos renascimentos causaram tantas torções de nariz no Reino Unido como este. Descontados os preciosismos acadêmicos ou a defesa quase fanática de que apenas o autor pode escrever sobre seus personagens, a morte do investigador que se gabava de suas “células cinzentas” não foi uma decisão arbitrária ou um capricho simples de Agatha Mary Clarissa Christie. A escritora decidiu encerrar a carreira de Poirot durante a ascensão nazista.

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SOPHIE HANNAH
Autora de tramas psicológicas, convenceu a HarperCollins com um
rascunho de um mistério que, segundo ela, só poderia ser
resolvido pelo personagem de Agatha Christie

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RAYMOND CHANDLER
Filho de americanos educado em Londres, o ex-soldado, criador
do investigador Philip Marlowe, começou a vender seus
livros policiais na Grande Depressão

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Tendo pertencido ao grupo de escritores que escolheu permanecer em Londres durante a Blitz (os bombardeios sistemáticos da Alemanha contra a Inglaterra), a autora, já reconhecida na Europa, terminou de escrever “Cai o Pano”, trancou-o num cofre para que não caísse em mãos inimigas e deixou um documento determinando que ele só fosse publicado depois de sua morte. E, de fato, apesar do declínio criativo detectado pela crítica em seus últimos livros, Agatha Christie só tirou o livro dali para ser publicado na véspera de seu falecimento. O fim de Poirot pelas mãos de sua autora tem por isso, para os críticos ingleses, um significado histórico que não poderia ser contornado, na opinião dela, por uma oportunidade de mercado.

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A autora discorda. “Seria uma omissão termos continuações de Bond e Holmes e não de Poirot”, disse Sophie Hannah no lançamento. “Os personagens amados não deveriam morrer.”

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IAN FLEMING
Ex-funcionário da inteligência da Marinha britânica, o autor inglês escreveu
na Jamaica quase todas as histórias que conhecemos de James Bond

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ARTHUR CONAN DOYLE
O médico começou a publicar as aventuras de Sherlock Holmes
e do fiel parceiro John H. Watson no final do século 19.
Ambos sobreviveram a seu criador em novas histórias

O livro é divertido e evoca com minúcia a ambientação dos mistérios de Agatha Christie, como no “Assassinato no Expresso do Oriente” e “O Caso dos Dez Negrinhos”, duas das mais impressionantes atuações de Poirot. A nova trama passa por todos os itens obrigatórios de uma novela policial da Rainha: personagens misteriosas, descritas com um certo humor inglês, em lugares onde cada detalhe pode levar à solução do mistério. Mas Hannah segue com tanto esforço e à risca a escola de Agatha Christie que em alguns momentos o tom do texto soa artificial. E datado.

O demérito parece acompanhar mesmo o modelo de reciclagem literária. “A Loura de Olhos Negros” é outro título de um grande escritor que desviou a trajetória para fazer “cover” de um grande ídolo. O romance traz de volta às vitrines das livrarias o investigador particular Philip Marlowe. Foi aplaudido por autores como Stephen King, que o descreve como a perfeita reprodução da melancolia de Raymond Chandler. O autor John Banville, ganhador de um Man Booker Prize por um romance totalmente inventado por ele, assina este novo policial como Benjamin Black. Como se o uso do pseudônimo advertisse o leitor do resultado que, no final das contas – e por mais divertido que seja –, mora ali no limite entre a imitação e o exercício literário.

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Fotos: PHILIPPA GEDGE; Bettmann/CORBIS; Horst Tappe/Glow Images; Hulton-Deutsch Collection/CORBIS


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