Durante cinco séculos, representantes da minoria branca de origem européia governaram, quase ininterruptamente, a imensa maioria dos peruanos, formada por índios ou cholos (mestiços de índios com brancos). No domingo 3 foi a vez de um candidato de origem chola chegar ao poder, pela primeira vez através do voto: o economista Alejandro Toledo, 55 anos, da frente Peru Possível, de centro-direita, venceu as eleições presidenciais no Peru, com 52,6% dos votos, derrotando o ex-presidente Alan García, da Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra), de centro-esquerda), que obteve 47,4 % dos votos. Cerca de 80% por cento da população peruana é descendente de indígenas, mas o simbolismo de Toledo ter chegado ao poder vai além, porque ele também representa o menino que superou a pobreza e o analfabetismo para alcançar o mais alto cargo político do país.

E foi esta imagem que Toledo mais explorou em sua campanha. “Serei o presidente de todos os sangues, de toda a gente!”, gritava ele para a multidão, que respondia “Pachacutic”, o imperador dos incas. Toledo nunca perdeu a oportunidade de dizer que é o oitavo dos 16 filhos de uma família carente. Sua mãe vendia peixe no mercado e seu pai era pedreiro. Na infância, o cholo trabalhou como engraxate e vendedor ambulante, sonhando um dia em progredir. Quando jovem, foi para a Califórnia e cursou economia na Universidade de San Francisco. Depois fez doutorado na renomada Universidade de Stanford, onde conheceu sua mulher, a antropóloga belga Eliane Kurp, tantas vezes comparada à Hillary Clinton por ser uma mulher independente, bem-sucedida e com opiniões próprias.

O casamento com uma gringa que fala fluentemente o quéchua (uma das línguas indígenas peruanas) favoreceu ainda mais sua imagem de candidato, por supostamente representar o ideal da miscigenação. A classe média que estudou fora do país também se sentiu representada. E nada abalou a fleuma do “casal 20”, nem acusações de que Toledo teria participado de bacanais com cocaína, nem o fato de ele não ter reconhecido uma filha fora do casamento, Sarahí Toledo Orozco, hoje com 12 anos. Assim como Hillary, Eliane defendeu de olhos fechados as possíveis puladas de cerca do marido.

Mas talvez o mais emblemático para os eleitores peruanos foi o fato de finalmente o Peru ter concretizado o “voto limpo”, sem denúncias de fraude nem manobras sujas para garantir a vitória, típicas do regime fujimorista. No ano passado, Toledo chegou a desistir de sua candidatura contra o ex-presidente Alberto Fujimori – hoje refugiado no Japão, depois das acusações de desvio de US$ 500 milhões para o exterior e de violações contra os Direitos Humanos. Fujimori acabou destituído pelo Congresso por “incapacidade moral” e novas eleições foram convocadas.

O futuro presidente vai encontrar pela frente um país mergulhado numa grave crise social, econômica e moral gestada em dez anos de regime discricionário. Pelo menos, Toledo tem muito prestígio e apoio internacional. Ele foi o candidato preferido dos Estados Unidos e da União Européia e já prometeu passar o chapéu – num giro pelos países europeus e pelo Japão – logo depois da posse no dia 28 de junho. “Estivemos em Nova York e Washington e felizmente os bancos de investimento encontraram em nosso programa e na equipe chefiada por Pedro Pablo Kuczynski (futuro ministro da Economia) uma enorme credibilidade”, assegurou o presidente eleito. Toledo também disse que pretende integrar-se ao Mercosul ou à Alca (Área de Livre Comércio das Américas). “Seja com o Mercosul ou com a Alca, o importante é aumentar as exportações do Peru”, afirmou Toledo.

O reaquecimento da economia peruana será um dos grandes desafios do presidente economista que fez carreira no Banco Mundial. “Seguiremos uma política fiscal e monetária absolutamente disciplinada. Não quero levar meu país à hiperinflação”, disse. Assim que subiu no palanque, a Bolsa de Valores de Lima reagiu positivamente, com a maior alta do ano, 3,71% e o dólar no mercado paralelo caiu 2,5%. E é bom que seja assim, porque nos últimos cinco meses, o PIB peruano decresceu 2,5% e hoje a indústria opera com apenas 50% de sua capacidade.

Mas atrair investimentos estrangeiros para o Peru não basta. No plano político, a mais árdua tarefa do novo presidente será reconstruir a institucionalidade democrática, duramente atingida durante o decenato de Alberto Fujimori (1990-2001). E, entre os monstrengos do finado regime está o SIN, serviço secreto criado pelo governo depois do golpe de 1992, quando Fujimori fechou o Congresso e interveio no Judiciário. O chefe informal do SIN, o sinistro ex-capitão do Exército Wladimiro Montesinos, era o homem-forte do Peru, envolvido com tráfico de drogas e armas e repressão a dissidentes. Foi justamente a revelação de que Montesinos subornou um político que desencadeou a queda de Fujimori.

Apoio de García – Apesar dos tiroteios de artilharia pesada trocados durante a campanha, o ex-presidente Alan García já avisou que não será um empecilho para o andar da carruagem de Toledo. “Não estarei na oposição e vou prestar ajuda e apoio quando necessário”, disse García duas horas depois de anunciado o resultado da votação. O presidente eleito não tem maioria no Congresso – sua coligação elegeu apenas 45 dos 120 parlamentares – e precisará do apoio de outros partidos para governar. Com 28 cadeiras, o partido aprista de García é o segundo no Congresso. Lourdes Flores, do partido Unidade Nacional e a terceira no ranking presidencial, também teria recebido um convite de Toledo para ingressar no novo governo, porém ela optou por manter-se na oposição. Uma oposição forte será sinal de que os peruanos vão estar atentos às ações de seu novo mandatário, ao contrário do que ocorreu com Fujimori, a cujos métodos ditatoriais e corruptos boa parte da sociedade fez ouvidos de mercador porque ele tinha conseguido driblar a hiperinflação e derrotar o terrorismo. “Toledo deve promover o consenso e a busca da unidade nacional e tem de exercer o poder com transparência”, disse o editorial do jornal El Comércio, de Lima.