As monarquias de todo o mundo sempre estiveram cercadas de histórias de intriga, traição e morte. Mas, desde o fuzilamento do czar russo Nicolau II e de seus familiares, em 1918, não se via uma tragédia tão nebulosa quanto o massacre de quase toda a família real do Nepal, paupérrimo país do Sul da Ásia famoso por abrigar a cordilheira do Himalaia e o pico mais alto do planeta, o Everest. Dez membros da família real, inclusive o rei Birendra e a rainha Aishwarya, foram mortos a tiros no dia 1º de junho, pouco antes de um jantar íntimo no palácio Naryanhiti, no centro da capital, Katmandu. As circunstâncias do massacre ainda estão envoltas em denso nevoeiro.

A primeira versão foi divulgada logo depois da tragédia. Alguns porta-vozes do governo, que pediram para não ser identificados, afirmaram que o culpado foi o príncipe herdeiro, Dipendra, 29 anos. Amável, educado em Eton, a exclusiva escola inglesa, ele teria tido uma séria discussão com a mãe, a autoritária rainha Aishwarya. Dipendra anunciou que iria se casar com sua namorada, a aristocrática Devyani Rana, 22 anos. A notícia teria enfurecido a rainha, que se opunha ao casamento e preferia que o filho se casasse com uma noiva escolhida por ela. O rei Birendra teria apoiado a rainha e ameaçado deserdar o filho. A suposta reação de Dipendra foi drástica: o príncipe teria sacado uma arma automática e disparado contra quase todos os presentes, matando o rei, a rainha, seu irmão, tios e primos. Em seguida, o príncipe teria dado um tiro na própria cabeça.

A história chocou os nepaleses. A maior parte deles reverenciava o rei Birendra, acreditando ser ele o símbolo da unidade nacional e uma reencarnação do deus hindu Vishnu. Milhares de súditos rasparam a cabeça em sinal de luto – um costume local e uma obrigação para os funcionários públicos do país – e a maior parte da população aderiu ao luto oficial de 13 dias. Mas muitos não acreditaram na história. O interesse de Dipendra por armas de fogo e o hábito de beber muito eram bem conhecidos, mas o príncipe também era muito popular e tinha fama de ser incapaz de fazer mal a alguém. Apesar das dúvidas e de estar em coma, Dipendra foi proclamado rei no hospital no dia seguinte à carnificina.

No domingo 3, o primeiro-ministro, Girija Prasad Koirala, e o então príncipe Gyanendra – irmão do rei Birendra – negaram a versão de que Dipendra teria matado o próprio pai. Eles apresentaram uma segunda hipótese: os membros da família real teriam morrido quando “uma arma de fogo explodiu ou foi disparada acidentalmente” dentro do palácio. Ninguém aceitou essa tese. Milhares de manifestantes saíram às ruas de Katmandu e entraram em choque com a polícia. O governo decretou toque de recolher na capital por três dias seguidos, mas só conseguiu aumentar as suspeitas em torno das mortes. Na segunda-feira 4, a situação ficou ainda pior. Dipendra morreu durante a madrugada e, logo depois, seu tio Gyanendra foi coroado novo rei.

Versão conspiratória – A partir daí, começou a ganhar força a terceira versão, mais shakespeariana. Segundo essa teoria, o massacre foi arquitetado nos corredores do palácio real para levar o então príncipe Gyanendra ao trono. O principal beneficiado, no entanto, seria seu filho, o príncipe Paras Shah, que é odiado pela população, mas passou a ser o herdeiro do trono. Shah é acusado de ser um playboy bêbado e violento, que teria atropelado um músico no final do ano passado. A versão conspiratória está sendo alimentada pelo fato de que Shah estava na sala onde ocorreu o massacre, mas saiu de lá sem nenhum ferimento. Além disso, seu pai era o único integrante da família real em visita ao Exterior no momento do massacre. Dois grupos, em tese, ganhariam com a queda de Birendra: militares linha dura e políticos interessados no fim do regime pluripartidário instaurado pelo rei em 1990.

A confusão é tão grande que pode levar o país a uma guerra civil. Os rebeldes maoístas, que atuam desde 1996 e se inspiram na organização peruana Sendero Luminoso, estão aproveitando para avançar. Ajudados pela China, eles têm grande apoio dos camponeses, graças à situação de extrema pobreza no Nepal, e podem se transformar numa forte ameaça ao governo e à estabilidade da região. Especialmente se o novo rei não for capaz de conquistar o mesmo respeito que a população tinha pelo seu irmão. Para isso, ele vai precisar convencer os nepaleses de que o massacre da família real foi mesmo obra de um príncipe apaixonado. E não uma sórdida conspiração palaciana.

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