A primeira semana de racionamento de energia no País deixou claro que, se o governo está perdido sobre qual a melhor estratégia a seguir, a sociedade brasileira não está. Nas residências, apesar do mau humor generalizado, como mostrou a reportagem à pág. 60, a palavra de ordem é racionalizar o consumo, desligar os eletrodomésticos dispensáveis, reduzir o uso dos demais, trocar lâmpadas incandescentes por modelos mais econômicos. As empresas também se ajustam para eliminar os desperdícios, investem em geração própria, trocam equipamentos obsoletos. Os primeiros resultados começaram a aparecer nos números do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a empresa privada responsável pelo gerenciamento do sistema elétrico brasileiro. Na semana passada, a primeira do racionamento, o consumo caiu 14% nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e 16% na região Nordeste. No Sudeste e Centro-Oeste, a economia manteve o nível dos reservatórios, que estão com 29% da sua capacidade, em média. No Nordeste, o nível caiu 1%, chegando a 26,7%, ainda assim acima das estimativas oficiais.

As notícias que chegam de Brasília mostram desorientação. Depois de receber críticas pesadas de associações de defesa dos consumidores, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e mesmo de juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), o governo recuou mais uma vez. Agora desistiu de sobretaxar os consumidores que conseguirem atingir a meta de consumo. Desistiu também de suspender o fornecimento dos consumidores que gastarem acima da cota, ao menos no primeiro mês. A suspensão ocorreria apenas no caso de reincidência. Questionana Justiça por várias liminares, a medida dificilmente será colocada em prática, dizem os advogados e especialistas do setor elétrico. No caso das regiões metropolitanas, há o problema operacional. Quem conhece por dentro uma empresa como a Eletropaulo, a responsável pela distribuição de energia na Grande São Paulo, afirma ser impossível. “A Eletropaulo tem 4,7 milhões de ligações, é inviável fazer o desligamento”, diz o físico José Goldemberg, membro da Comissão Nacional de Política Energética e ex-presidente da distribuidora de energia (leia entrevista à pág. 86). De olho nos dividendos políticos, o governador mineiro Itamar Franco fez o que pôde para chamar a atenção da opinião pública: afirmou que em Minas não permitirá que os cortes ocorram.

Iniciativa – Longe do poder, os empresários já perceberam que melhor negócio é tentar a todo custo reduzir o consumo de energia sem ter de cortar a produção ou com o menor prejuízo possível. “Acredito que ainda vamos ter muitas surpresas”, diz o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Desenvolvimento Industrial (Iedi), entidade que reúne industriais de peso. “As empresas vão ter de tirar leite de pedra, mas acho que a redução do consumo será expressiva. O maior problema é que é preciso tempo para se ajustar”, diz o economista. A engenharia elétrica inclui a transferência da produção para máquinas mais eficientes ou mesmo para regiões fora da área do racionamento, diz Almeida, mas também a utilização de fontes de energia alternativas. “A verdade é que o País tem muito a fazer para melhorar a sua competitividade energética”, diz ele.

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), no esforço de racionalizar o consumo de energia, acertou recentemente uma parceria com a Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco), entidade criada pelas empresas que dão consultoria a quem queira consumir menos energia. Agora a Abesco ganhou uma sala na sede da federação das indústrias, encurtando o caminho para os interessados. Filiada à Abesco, a empresa carioca Newmar termina nas próximas semanas um projeto no Hotel Renaissance, um dos mais luxuosos de São Paulo. O hotel investiu em uma central geradora de energia movida a gás natural, que será utilizada no horário de pico, entre 18h e 21h, quando o custo da energia para as empresas chega a ser cinco vezes maior. A central deverá entrar em operação até o final do mês e representará uma economia de 40% na conta de energia, diz Newton Figueiredo, diretor da Newmar. O sistema também será acionado em caso de emergência.

Com 20 mil habitantes, a pequena cidade de Santa Helena, no oeste do Paraná e às margens da represa de Itaipu, é um exemplo de que a preocupação com a economia não se restringe ao setor privado. Lá, o prefeito Silon Schimidt (PPB) criou há três anos, ainda no seu primeiro mandato, um programa para racionalizar o consumo de energia. “Na iluminação pública, passamos a usar lâmpadas de sódio, e nas escolas, fluorescentes. Instalamos sensores de presença em todas as salas das repartições públicas e fizemos uma campanha com a população para que todos economizassem na cidade”, diz o prefeito de Santa Helena, uma das primeiras cidades do País a aderir ao Programa de Conservação de Energia Elétrica, criado pelo governo federal em 1997. A pedreira municipal também foi modernizada para gastar menos – as máquinas antigas foram trocadas e instalou-se um sistema que desliga os motores no famigerado horário de pico. O programa de energia custou R$ 1,3 milhão, dinheiro que saiu dos cofres da cidade, cujo orçamento anual é de R$ 25 milhões. Boa parte deses recursos, diga-se, vem dos royalties gerados pela usina de Itaipu, a maior do País, que alagou uma área do município quando foi construída. “Conseguimos reduzir o consumo em até 35%, o suficiente para abastecer 700 residências, e o investimento deve se pagar em três anos. E tudo isso com iniciativas simples, práticas e objetivas”, diz Schimidt.

 

Política – Nos corredores de Brasília, a movimentação continuou intensa durante a semana e não faltou emoção. Em depoimento no Senado, Parente, o ministro do Apagão, chegou a bater boca com um parlamentar petista, defendendo a estratégia do governo para enfrentar a crise energética. A base governista também teve pouca disposição para ouvir críticas, como demonstrou a recepção que estudiosos e especialistas do setor elétrico tiveram na terça-feira 5 no plenário do Senado. Chamados pela Comissão de Infra-estrutura para participar de uma audiência pública para discutir o tema, os convidados foram tratados como penetras pelo organismo, presidido pelo senador José Alencar, do PFL baiano. Os diretores da Coordenação de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luis Pinguelli Rosa e Maurício Tolmasquim, e o especialista da Universidade de São Paulo (USP), Ildo Sauer, críticos contundentes da política federal para o setor, foram impedidos de participar e saíram indignados. “Isso é um escândalo. Eles nos convidam e depois não nos deixam falar”, criticou Pinguelli, que, assim como os outros, teve todas as despesas pagas pelo Senado para comparecer ao evento. Oficialmente, tudo não teria passado de um mal-entendido. Nos bastidores, a guinada foi vista como uma manobra para evitar críticas ao governo.

Investimentos – A maior preocupação dos economistas diz respeito aos efeitos que o racionamento de energia poderá criar, caso os problemas de fornecimento persistam nos próximos anos. Pesquisa realizada pela Fiesp e o instituto de pesquisas Vox Populi dá uma pista. Entre as 401 empresas ouvidas, apenas 1,3% do total afirmou que já estava preparada para a situação e, portanto, não sofreria nenhum efeito da falta de energia. Para 18,3%, será preciso demitir. Com relação aos investimentos, 26,8% das empresas consultadas dizem que pretendem reduzi-los – 29,8% mantêm os planos.

O tamanho do problema, na verdade, ainda não é muito claro. De qualquer forma, os efeitos da menor oferta de energia deverão ser sentidos por quase toda a economia. “Será preciso repensar a estrutura industrial do País. Alguns setores, principalmente aqueles que consomem mais energia, terão de se reestruturar, já que sua competitividade será reduzida”, afirma Júlio Sérgio Gomes de Almeida. A análise leva em conta um dado importante: o fato de que a energia nunca mais será tão barata quanto foi na década de 80 e no início dos anos 90. “Mesmo que a oferta apareça, haverá um choque de preços, já que o Brasil vai sair de um modelo hidrelétrico para um modelo misto. O resultado é que a economia mudará muito”, conclui Almeida.

Aprenda a ler e a controlar
o seu consumo

Aprender a ler o medidor de luz instalado nas casas ou em painéis centrais nos edifícios é um recurso prático para economizar energia. É com base na sua leitura que as companhias energéticas calculam a quantidade de eletricidade gasta nas residências em quilowatts/hora (kWh) e o valor da conta mensal. Uma consulta permite saber, por exemplo, se você está cumprindo as metas de racionamento antes mesmo de a fatura chegar. “É fundamental que o consumidor saiba observar a evolução do seu consumo. Além de servir para detectar possíveis erros na conta, a leitura do relógio pode ajudar a controlar excessos”, recomenda Maria Inês Dolci, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Há dois tipos de medidores em uso no País. O ciclométrico, semelhante ao hodômetro dos automóveis, apresenta em algarismos o total acumulado de kWh consumido pela residência. Já o medidor de ponteiros registra o mesmo valor em quatro ou cinco pequenos relógios dispostos em sequência. Para cada volta completa que o ponteiro do relógio à direita dá, o ponteiro do próximo relógio, à esquerda, anda uma casa e assim sucessivamente.

Para saber quanto sua residência já consumiu desde a última leitura, basta subtrair o valor apontado no relógio (leia quadro abaixo) da marcação verificada no mês anterior, que vem registrada na conta de luz. Depois, é só multiplicar o resultado pela constante de medição, também encontrado nas contas e que geralmente é igual a 1. Caso o seu marcador registre 9.231 kWh e a marcação verificada na última conta seja 8.996 kWh, isso significa que você já gastou 235 kWh. Para ter a média diária do consumo, basta dividir esse resultado pelo número de dias transcorridos entre a sua leitura e a da companhia energética.

Se todas as lâmpadas da casa estiverem apagadas, nenhum aparelho for ligado à tomada e mesmo assim o relógio continuar a andar, algo está errado. “Se ele não parar, é sinal de que a instalação elétrica está com defeito”, diz Antonio Cezar Jannuzzi, técnico da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). É aconselhável chamar um eletricista e, caso a suspeita do defeito recaia sobre o medidor, o consumidor pode solicitar à companhia energética de sua região uma aferição. Para garantir a eficácia da medição, a Aneel está fiscalizando relógios de luz por todo o País em convênio com o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro).

Henrique Fruet

 

 

O PT se organiza para discutir a crise

Partido dos Trabalhadores marcou para o início de julho um seminário que pretende ser um caldeirão de idéias para ajudar o País a encontrar o fim do túnel da crise energética. A decisão de realizar o seminário surgiu durante um debate organizado pelo Instituto Cidadania – a ONG comandada por Luiz Inácio Lula da Silva –, na sede do PT, em Brasília. A convite de Lula, 15 especialistas, parlamentares petistas e economistas ligados ao partido debateram a crise e a melhor maneira de a esquerda apresentar suas idéias. Durante o debate, Lula aproveitou para, mais uma vez, criticar o governo federal. “A sociedade brasileira está de parabéns pela boa vontade demonstrada em economizar. Energia é uma equação que tem de ser olhada para daqui a 20 ou 30 anos”, afirmou o presidente de honra do PT durante o evento em Brasília. Lula aproveitou ainda para mostrar que o assunto é levado a sério pelo partido. “Tanto que não enfrentamos problema de fornecimento de energia em nenhum dos três Estados que governamos”, disse.

O encontro de julho reunirá acadêmicos, empresários, políticos e outros representantes da sociedade civil para discutir alternativas viáveis para enfrentar a crise. Pretende também apontar os responsáveis pela situação que o País enfrenta.

Advogados demais e
engenheiros de menos

Integrante do Conselho Nacional de Política Energética, criado para assessorar o presidente FHC, o ex-ministro de Ciência e Tecnologia José Goldemberg considera que o governo se preocupa demais com as sobretaxas e descuida dos aspectos técnicos. A seguir, os principais trechos da entrevista:

ISTOÉ – Qual sua avaliação da estratégia do governo para enfrentar a crise?
José Goldemberg – Eu não tenho entusiasmo por medidas de contenção. Aparecem milhares de exceções. Será um milagre se todo mundo reduzir o consumo em 20%. Por isso, considero essas medidas uma espécie de tarifaço. As residências poderão conseguir, mas o setor industrial terá muita dificuldade, sobretudo as pequenas e médias indústrias.

ISTOÉ – E qual seria a melhor opção?
Goldemberg – A curto prazo, precisam ser resolvidos os gargalos para trazer energia do Norte, do Sul e da Argentina. Deveria haver um esforço realmente emergencial para resolver esses gargalos.

ISTOÉ – O consumidor corre mesmo o risco de ter sua energia cortada?
Goldemberg – Precisamos ver como irá funcionar. A Eletropaulo, e eu fui presidente da Eletropaulo, tem 4,7 milhões de ligações na Grande São Paulo. Vão aparecer milhares de casos especiais. Esse negócio de cortar é inviável.

ISTOÉ – O sr. não está otimista.
Goldemberg – Não estou. Eu queria era ver gente trabalhando nos gargalos. Outro dia perguntei a alguém do governo o que tinha acontecido com essa linha do Sul que não tem capacidade para trazer a energia. Me disseram que foi contratado o serviço e irá ficar pronto no ano que vem. Ora, é um problema de emergência nacional! Precisa colocar esse pessoal para trabalhar 24 horas por dia! Diz que não pode fazer sem licitação, dispense-se a licitação – eles fazem coisas tão piores por aí, não é mesmo?

ISTOÉ – O sr. acredita que, mesmo com a redução do consumo, poderemos ter apagões?
Goldemberg – Eu tenho a impressão de que o sistema escapará do apagão. Mas acho que deveriam colocar a Eletrobrás para trabalhar furiosamente para resolver esses gargalos. Soube que o ministro das Minas e Energia criou uma comissão para estudar a importação de energia e deu prazo de 60 dias para a comissão fazer um relatório. Ora, tenha dó, 60 dias! Manda três diretores da Eletrobrás para a Argentina e resolve. Essas comissões, a gente sabe, se eternizam. A brincadeira que eu faço é que nesse processo todo tem advogado demais e engenheiro de menos.

ISTOÉ – O Conselho Nacional de Política Energética participou da elaboração das últimas medidas?
Goldemberg – Não, não fomos ouvidos. Foram tomadas no âmbito do Comitê de Gestão da Crise.

ISTOÉ – O conselho foi esvaziado?
Goldemberg – Seguramente. Não houve nenhuma convocação.

ISTOÉ – E os conselheiros não cogitam se rebelar?
Goldemberg – Trata-se de uma comissão que assessora o presidente, é ele quem convoca. E é o próprio ministro das Minas e Energia quem preside.

ISTOÉ – Pelo jeito não estão precisando de ajuda…
Goldemberg – Não concordaria com isso não, acho que estão precisando de ajuda sim, mas esta pode não ser a percepção deles.

Luiz Antonio Cintra