No início dos anos 80, surgiu nos Estados Unidos a Rainbow Coalition, a coalizão arco-íris, que aglutinou militantes e intelectuais num poderoso movimento que privilegiava a ação política direta em detrimento da atuação partidária. Quem liderou a iniciativa foi o reverendo Jesse Jackson, que tentou chegar à Presidência em 1984 e 1988. Tinha cunho progressista e pregava uma nova política, reunindo sob o slogan um amplo leque de interesses. No Brasil, uma articulação parecida surge agora pelas mãos da candidata Marina Silva. Como Jackson, a presidenciável é um fenômeno que desafia analistas e assusta adversários. Em duas semanas de campanha oficial, ultrapassou Aécio Neves e emparelhou com Dilma Rousseff, vencendo em todas as simulações de segundo turno. Sob ataques cada vez mais duros de tucanos e petistas, Marina se movimenta com rapidez no tabuleiro eleitoral.

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NO CENTRO DAS ATENÇÕES
Mesmo atacada por todos os lados, Marina Silva consegue ampliar seu arco de alianças

Uma análise detalhada dos atos oficiais de campanha ajuda a entender onde e como Marina tem buscado apoio para sua candidatura. Como dispõe de pouco tempo para expor suas ideias até a eleição de outubro, a presidenciável concentra esforços. Além de fincar o pé em Pernambuco, para tentar alavancar seu nome na região Nordeste, a candidata dedicou a maior parte da agenda a caminhadas, encontros e entrevistas à mídia no Sudeste. Esteve em São Paulo, onde lançou o programa de governo, e também no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, terra do vice, Beto Albuquerque. A aposta foi certeira. Nas pesquisas, Marina abriu vantagem sobre Dilma e Aécio justamente nos dois maiores colégios eleitorais do País.

Na capital gaúcha, Marina foi estender a mão ao agronegócio, um dos setores mais resistentes à candidata. Ao lado de Beto, visitou na quinta-feira 4 uma feira agropecuária na região metropolitana de Porto Alegre. Os dois também se reuniram, por mais de uma hora, com dirigentes do segmento na sede da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), onde discutiram temas sensíveis como a demarcação de terras indígenas, o código florestal e os transgênicos. “Os representantes do agronegócio disseram que foi muito bom ouvirem minhas propostas por mim mesma, não pelo que liam ou ouviam falar”, afirmou.

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Marina repetiu o que consta em seu programa de governo. Defendeu a fusão das políticas florestal, fundiária e da pesca em um mesmo Ministério da Agricultura, e a priorização das obras de infraestrutura logística para atender o agronegócio, com destaque para a construção de ferrovias, portos e sistemas de armazenagem. Esse foi o segundo evento ligado ao agronegócio nesse pouco tempo de campanha. No dia 28, Marina participou da Fenasucro, tradicional feira de tecnologia sucroalcooleira, em Sertãozinho, no interior paulista. Em discurso, atacou a falta de planejamento de longo prazo para o setor energético e elogiou a produção local de energia a partir de bagaço e da palha da cana, como um exemplo a ser seguido pelo restante do País. Foi aplaudida.

A agenda de compromissos de Marina tem sido discutida diariamente pela coordenação de campanha. Discursos e imagens são sempre gravados e editados para o programa eleitoral na tevê. A ideia é dar a dimensão da amplitude de acordos feitos pela candidata, procurando desfazer a pecha de uma Marina radical e intransigente. O mesmo raciocínio tem sido usado para reforçar o comprometimento da candidata com a manutenção de políticas sociais à população de baixa renda. Sempre que pode, Marina lembra sua sofrida trajetória de menina pobre criada num seringal no Acre, o que funciona como uma espécie de “selo de pobreza”. Se o PT de Dilma conseguia colar em Aécio boatos sobre o fim do Bolsa Família, com Marina a estratégia não surte efeito. Além de garantir que vai manter o programa, a candidata prometeu estender o benefício a mais dez milhões de brasileiros que ganham até meio salário mínimo. Foi para falar ao eleitorado nordestino, que mais depende dos programas sociais, que Marina visitou o Centro de Tradições Nordestinas numa de suas incursões em São Paulo.

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O comando de campanha de Marina prevê para os próximos dias colocá-la em contato com os evangélicos, público importante de sua base de sustentação. Esse encontro já deveria ter acontecido, mas foi suspenso após a repercussão negativa do episódio envolvendo a divulgação de uma versão do programa de governo com artigo de apoio à união homoafetiva. O artigo foi retirado após queixas públicas do pastor Silas Malafaia, o que provocou a reação dos movimentos LGBT. Marina atribuiu o problema a uma “falha processual na editoração” do programa, mas o estrago foi feito e deixou patente a opção dela por uma agenda moral absolutamente conservadora. “Essa agenda repele igualmente a legalização do aborto, a descriminalização da maconha e, obviamente, o casamento gay”, ressalta o cientista político Antonio Lavareda. “Curiosamente, a mesma Marina conservadora esbanja um charme de candidata antissistema que é escolhida pelos jovens que se contrapõem ao atual modelo político”, diz.

Os protestos que tomaram as ruas do País em junho de 2013 foram convocados pelos jovens, os mesmos que agora preferem votar em Marina. Mas esses mesmos eleitores são a favor do casamento gay, da legalização do aborto e da descriminalização da maconha. Apesar de Marina ter ideias conservadoras sobre esses temas, ela não perde os jovens e ainda ganha o público evangélico, que costuma decidir seu voto baseado numa agenda moral ortodoxa que repele qualquer liberalização. A presidenciável concentra também o voto nacionalista do eleitor do PSB, enquanto carrega as expectativas liberalizantes dos agentes do mercado financeiro e de grande parte da indústria. Essa estranha capacidade de se manter acima de tamanhas divergências, mesmo sem negá-las, faz com que Marina atraia para si o voto dos ambientalistas e do agronegócio ou dos nacionalistas e dos liberais. Cores, credos e orientações convergem numa só direção, quando deveriam se anular. O que os une é um único sentimento: o da mudança. Por quanto tempo ela conseguirá manter essa espécie de coalizão é uma incógnita.

Foto: Kelsen Fernandes