Era uma biblioteca diminuta: apenas oito livros, amassados e sem lombada, arrumados sob as tábuas soltas no chão ou escondidos embaixo das saias de uma menina judia de 14 anos, Dita Kraus. Ela se encontrava no bloco 31 do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). No pavilhão onde se concentravam as crianças prisioneiras circulavam, escondidos dos soldados da SS e sob a responsabilidade da garota tcheca, títulos como “Uma Breve História do Mundo”, de H.G. Wells e “As Aventuras do Bravo Soldado Svejk”, de Jaroslav Hasek. Fascinado por essa história de resistência e coragem durante a guerra, o jornalista espanhol Antonio G. Iturbe escreveu “A Bibliotecária de Auschwitz”, que chega agora ao País pela Editora Agir, uma ficção inspirada em fatos reais, já publicada em 11 países.

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FIM DA INFÂNCIA
Dita Kraus (acima) e outras crianças em Auschwitz (abaixo):
livros eram o único contato entre os confinados e o mundo

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Iturbe tomou conhecimento da história de Dita em uma página do livro “A Biblioteca à Noite”, de Alberto Manguel. “O fio que persegui foi a existência dos volumes clandestinos no campo familiar de Auschwitz, na Polônia. Um livro levou a outro”, conta o espanhol, em entrevista exclusiva à ISTOÉ. Os elementos ficcionais são poucos, como a inclusão do Professor Morgenstern, que o autor diz ser sua própria voz nas páginas.

A opção por não fazer uma biografia tradicional de Dita, que teve o sobrenome modificado na obra, lhe deu a liberdade de valorizar o sentimento de beleza simbólica, dentro de uma realidade que nada tinha de poética.

Ao começar a pesquisar sobre a pequena biblioteca, o espanhol se deparou com outro livro, de Ota Kraus (1921-2000),  marido de Dita. Acabou, assim, conseguindo fazer contato com a ex-prisioneira, hoje com 84 anos. Eles passaram a se corresponder por e-mail, apesar do inglês “péssimo” de Iturbe, mas contando com a “paciência” da senhora  Dita, que mora em Israel. Marcaram um encontro em Praga, lugar de onde ela saiu expulsa pelos nazistas, primeiro para o gueto de Terezín, na República Tcheca, e depois para Auschwitz, na Polônia. Forte e lúcida, a bibliotecária contou ao autor, também, histórias engraçadas, como a de seu primeiro beijo. “Foi em um cemitério de Praga.

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CONTATO
O autor Iturbe encontrou Dita Kraus, hoje com 84 anos,
em Praga, de onde ela foi expulsa

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Os nazistas impediam as crianças e os adolescentes de brincar ou frequentar os parques públicos. Dessa forma, converteram o cemitério em um lugar para jogos e espaço de liberdade”, conta.  Dita parou no bloco 31 do campo de Auschwitz por equívoco, pois os internos desse local deveriam ter no máximo 13 anos. Ela, já com 14, passou a cuidar de todos. Ao chegar, o líder do grupo, Alfred (Fredy) Hirsch (1916-1944), ofereceu a ela o cargo de bibliotecária. Cabia à garota controlar o empréstimo de livros aos professores do pavilhão, além de reunir e esconder todas as obras nas inspeções diárias para que não chegassem às mãos dos oficiais nazistas. “Fredy Hirsch é um personagem que ainda não ganhou a importância histórica devida”, afirma Iturbe. Hirsch suicidou-se em Auschwitz em condições suspeitas. Mesmo quase 70 anos depois da guerra, histórias como as de Dita são lições de resistência. “A vida dela é como uma janela de esperança porque, nessas situações-limite, vemos como surge o pior e o melhor da condição humana”, diz o autor.

Foto: B. Fishman/Corbis