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Conheça a história política do pernambucano.

O desembarque em 1976 de Ana Lúcia Arraes, acompanhada pelos filhos Eduardo e Antônio, no aeroporto de Dar El Beid, em Argel, teve grande significado para uma das famílias mais simbólicas na luta contra a ditadura brasileira. Filha mais velha do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, Ana Lúcia chegou à capital da Argélia para rever o pai – a quem não encontrava havia mais de uma década – e, principalmente, para que os meninos conhecessem o avô. Exilado no norte da África desde 1965, o homem deposto do Palácio das Princesas vivia longe dos netos, nascidos em Recife depois de sua partida forçada para o país mediterrâneo. Os 14 anos passados no Exterior deixaram marcas profundas nos integrantes do clã nordestino, mas as amarguras do degredo foram insuficientes para quebrar a liderança exercida por eles na política pernambucana. A viagem a Argel ficou marcada por ter sido o primeiro encontro de Miguel Arraes com o neto, que se tornou seu herdeiro. Começava a ser forjada ali uma das principais lideranças políticas do País.

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Eduardo Henrique Accioly Campos nasceu menos de dois meses depois da partida do avô para África, no dia 10 de agosto de 1965. Recém-casada, Ana Lúcia ficara no Brasil. Os filhos não receberam os sobrenomes do avô porque o pai deles, o escritor Maximiano Campos, temia perseguições dos militares. Quando deixou o Brasil, Arraes estava no segundo casamento. A primeira mulher, Célia Souza Leão, com quem teve oito filhos, morreu em 1961. Com a segunda, Magdalena, teve Mariana e o caçula, Pedro, nascido na França durante o exílio. Preparado pelo avô para assumir seu espólio político, Eduardo Campos, o mais velho dos netos, fez jus às expectativas da família. Pavimentou uma brilhante carreira política, com uma eleição para deputado estadual, três para federal e dois mandatos de governador de Pernambuco. Ao sair do executivo estadual, tinha mais de 80% de aprovação da população. Ele foi também secretário da Fazenda de Pernambuco em uma das gestões do avô e ministro da Ciência e Tecnologia no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Eduardo Campos conheceu o avô Miguel Arraes em 1976

Na quarta-feira 13, aos 49 anos, o herdeiro moldado por Arraes, mas que irradiava luz própria e marcava importantes diferenças com o avô, principalmente na maneira moderna de fazer política, teve sua meteórica trajetória interrompida abruptamente, quando o avião em que fazia campanha como candidato a presidente da República caiu em Santos (SP) e provocou a morte dos sete ocupantes. Na aeronave, além de Campos, estavam um de seus articuladores políticos, o ex-deputado Pedro Valadares, o assessor de imprensa, Carlos Augusto Leal Filho (conhecido como Percol), o fotógrafo Alexandre Severo Gomes, o cinegrafista Marcelo de Oliveira Lyra e os pilotos Geraldo Magela Barbosa da Cunha e Marcos Martins. Presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB), estava em terceiro lugar nas pesquisas de opinião, com cerca de 9% das preferências dos eleitores, atrás da presidenta Dilma Rousseff (PT) e do ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves (PSDB).   

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Os casamentos de Arraes, dos filhos e netos concentram alguns dos sobrenomes mais poderosos da região, como Alencar, Accioly e Souza Leão, este último muito conhecido por denominar um famoso bolo apreciado pelos pernambucanos. Com a morte de Campos, uma das mais tradicionais famílias nordestinas teve adiado o sonho de ver um de seus representantes chegar ao Palácio do Planalto. Embora nunca se tenha candidatado a presidente, Miguel Arraes de Alencar também traçou planos para presidir o Brasil. Nascido em Araripe (CE), tinha origens na oligarquia local e deixou a região para continuar os estudos. Formou-se na Faculdade de Direito do  Recife em 1937.

Mesmo sem nunca ter sido candidato, Arraes sonhava presidir o Brasil

Entrou para o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e, nesse emprego, aproximou-se dos trabalhadores rurais e do então governador Barbosa Lima Sobrinho, que mais tarde se notabilizaria como presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Convidado por Barbosa, assumiu o cargo de secretário estadual da Fazenda em 1947. Na sequência, elegeu-se deputado estadual e, em 1959, venceu a disputa para a prefeitura da capital de Pernambuco. Três anos depois, conquistou o governo do estado pelo PST depois de derrotar dois caciques da política local, Armando Monteiro Filho e João Cleofas. Monteiro era pai do atual candidato a governador pelo PDT, que leva o mesmo nome do pai. Nessa campanha, em uma jogada de marketing surpreendente para a época, assumiu o rótulo de “Zé Ninguém”, expressão usada pelo governador Cid Sampaio, seu concunhado e ex-aliado, em referência ao fato de Arraes ter saído do interior do Ceará.

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No Palácio das Princesas, o mesmo ocupado pelo neto durante oito anos, quando Campos se tornou o governador mais bem avaliado do País, Arraes chamou a atenção dos brasileiros pela ousadia com que enfrentou as classes dominantes do Estado. O apoio dado às Ligas Camponesas, movimento em defesa da reforma agrária liderado pelo advogado Francisco Julião, aumentou a resistência dos coroneis acostumados a mandar no Estado. Com o lema “a terra é de quem trabalha”, Julião desafiou os coroneis que mandavam na política local. Embora defendessem propostas semelhantes para o campo, também tinham divergências. “No fundo, Arraes sempre sonhou em ser o Getúlio Vargas do Nordeste”, dizia Julião depois da redemocratização do Brasil. Nas questões agrárias, um dos principais conselheiros de Arraes era Gregório Bezerra, histórico militante do antigo Partido Comunista. O mesmo ambiente de radicalização política predominou no Brasil durante o governo João Goulart, que tentava implantar reformas de base contra as quais se insurgiram as classes dominantes. Esse confronto fomentou as posições extremadas que provocaram reação das classes dominantes e serviram de justificativa para o golpe militar de 1964.

Preso na sede do governo no dia 1º de abril de 1964, Arraes perdeu o cargo, mas se transformou em um mito para os trabalhadores contemplados com suas políticas sociais. A imagem de “pai dos pobres” ficou no imaginário da população. O governador deposto permaneceu mais de um ano encarcerado em Recife, na ilha de Fernando de Noronha e no Rio de Janeiro. Partiu para o exílio na capital argelina em 16 de junho de 1965.

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Em Argel, antes mesmo de conhecer o neto Eduardo Campos, Arraes se tornou referência para centenas de brasileiros banidos pela ditadura. Muitos moraram na residência do ex-governador. Em 1970, de uma só leva, chegaram 40 banidos, muitos com suas famílias. Quem foi acolhido pela família tem boas recordações. “Vivemos nove meses em um quarto no segundo piso e fazíamos todas as refeições com os Arraes”, afirma o ex-deputado pernambucano Maurílio Ferreira Lima, que trabalhara como oficial de gabinete de Arraes no governo estadual e foi para o país africano em 1969. “Saímos de lá e fomos para um apartamento quando alguns filhos deles chegaram do Brasil para viver lá”, diz a arquiteta Ana Angélica, a mulher de Ferreira Lima. Enquanto morou em Argel, ela trabalhou para o governo local em um projeto do arquiteto Oscar Niemeyer.

Bem humorado, o ex-deputado ainda se lembra da primeira vez que viu Arraes na capital argelina.  Ele e Ana Angélica subiram ao terceiro piso da casa para serem recebidos pelo ex-governador e o encontraram vestido em um robe de chambre de seda chinesa, um costume local. Ferreira Lima também se diverte quando fala dos esforços que o ex-governador fazia para não ser cumprimentado pelos argelinos, que têm a tradição de beijar cinco vezes no rosto, gesto equivalente ao abraço dos brasileiros. O constrangimento ficava ainda maior quando, durante as recepções, os homens tentavam tirar Arraes para dançar. Ele nunca aceitava, o que era mal visto pelos anfitriões.

Eduardo estreou como deputado em 1990 já pelo PSB

Um arranjo familiar feito ao partirem para o exílio demonstra como a ditadura afetou Arraes, Magdalena e seus filhos. Quando deixaram o país, a então caçula Mariana tinha menos de dois anos de idade. O ex-governador não quis privá-la da convivência com os irmãos e contou com a ajuda da ex-sogra, dona Carmem Souza Leão. A mãe de Célia, a primeira mulher, prontificou-se a ficar com a filha de Magdalena, além de outros netos, que iam para a Argélia à medida que concluíam o ginásio. Mariana só reencontrou os pais quando tinha cinco anos e foi morar em Argel.

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As preocupações com o núcleo familiar e a predileção por sobrenomes tradicionais perduraram nas gerações seguintes. Eduardo Campos se casou ainda jovem com Renata, filha do renomado médico Ciro de Andrade Lima e sobrinha de Zélia, viúva do escritor Ariano Suassuna, que morreu no último mês de julho. As famílias de Renata e Campos eram vizinhas de  Suassuna na infância e na adolescência do casal. A vocação política do primogênito de Ana Lúcia e Maximiano se tornou evidente logo que ele entrou para o curso de Economia da Universidade Federal de Pernambuco, em 1981. Eduardo Campos fez parte do diretório acadêmico da faculdade e, nessa época começou a andar com o avô. Só se separaram quando Arraes morreu, em 2005, no dia 13 de agosto, exatamente nove anos antes do trágico acidente da semana passada. Em 1982, Arraes se elegeu deputado federal pelo PMDB. Quatro anos depois, filiado ao PSB, retornou ao Palácio das Princesas ao derrotar o candidato do PFL, José Múcio Monteiro, e levou Campos para trabalhar em seu gabinete. A estreia de Campos nas urnas se deu em 1990, quando conquistou uma cadeira na Assembleia Legislativa de Pernambuco também pelo Partido Socialista. Anos depois, elegeu-se deputado federal e foi nomeado secretário estadual da Fazenda pelo avô, mais uma vez escolhido pelos pernambucanos para governar Pernambuco. Campos ainda conquistou dois mandatos federais antes de chegar ao Palácio das Princesas. Em 2010 foi reeleito governador.

À frente do governo do Estado, Eduardo Campos marcou diferenças com o avô, seu principal padrinho político. Acostumado às velhas práticas políticas, Arraes teve destacada importância local e nacionalmente num outro contexto e momento do País. Eduardo Campos fez história em seu tempo. A gestão à frente do estado foi marcada pelos esforços em modernizar industrialmente a região. Não só conseguiu, como foi além. Criou o importante programa Pacto pela Vida, implantado em Pernambuco, que diminuiu em 60% o número de homicídios no Recife. Rapidamente, ganhou popularidade e virou referência nacional, sendo elogiado por empresários do naipe de Jorge Gerdau. Dois anos depois, em uma espécie de aquecimento para a campanha presidencial de 2014, Campos evidenciou sua força política ao garantir, com larga vantagem, a vitória de seu candidato, Geraldo Julio (PSB), no primeiro turno nas eleições pela prefeitura do Recife. Não se tratou de um feito qualquer. Com esse resultado, Campos derrotaria nada menos do que o candidato do ex-presidente Lula numa cidade do Nordeste, reduto onde o petista desfruta seus maiores índices de popularidade. O socialista conquistou 51,14% dos votos dos pouco mais de 1,1 milhão de eleitores recifenses. Aliado histórico do PT (desde 1989 o PSB apoiava as candidaturas petistas), Campos utilizou um desconhecido secretário de governo para desbancar o ex-ministro Humberto Costa, postulante indicado por Lula, que ficou apenas na terceira colocação.

Em 2013, recebeu o apoio inesperado de Marina

Em 2013, na esteira do triunfo sobre Lula no Recife, os políticos do PSB entregaram todos os cargos no governo federal. Campos passou a criticar a presidenta Dilma Rousseff e o PT, principalmente por suas alianças com figuras nada respeitáveis da política brasileira, como o senador Renan Calheiros (PMDB). Na entrevista que deu ao Jornal Nacional, na véspera da sua morte, Campos ainda afirmou que “esse governo é o único governo que vai entregar o Brasil pior do que recebeu”.   Em setembro do ano passado, depois de romper com o governo Dilma Rousseff para se lançar na corrida ao Planalto, Campos recebeu um apoio inesperado. A ex-senadora Marina Silva não conseguiu o número de assinaturas necessárias para criar o partido Rede Sustentabilicade e decidiu agregar-se ao PSB. Os planos do ainda governador deram uma guinada. De um momento para outro ele passou a ter como aliada a mulher que teve 20% dos votos nas eleições  presidenciais de 2010, pelo Partido Verde (PV). As bandeiras ecológicas de Marina o levaram a adaptar seu programa de governo. Apesar das divergências entre os dois grupos, principalmente nas coligações estaduais, os dois demonstravam sintonia na campanha. Com a morte de Campos, as duas legendas têm o prazo legal de dez dias para definir o novo candidato a presidente. Pelas primeiras reações, a ex-senadora tem grandes chances de ser a escolhida.  

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O currículo consistente de Campos teve poucos arranhões em duas décadas e meia de vida pública. Assim como o avô, não construiu seu perfil associado à corrupção. Nessa linha, o pior momento aconteceu em 1997, quando o neto de Arraes foi convocado para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a emissão irregular de precatórios (dívidas públicas decididas pela justiça). Na condição de secretário da Fazenda no governo do avô, autorizou operações que, na prática, funcionavam como uma espécie de fábrica de dinheiro para o estado. Vários estados e municípios adotaram a mesma prática, considerada um crime financeiro pela legislação nacional. Aos 31 anos, foi na condição de depoente na CPI que Campos se tornou conhecido de grande parte dos brasileiros. Mesmo pego na irregularidade, ele esnobou simpatia e conquistou os parlamentares que o interrogavam. Argmentou que, em meio às dificuldades financeiras enfrentadas por Pernambuco, era a única maneira de fazer caixa para realizar investimentos. Posteriormente, decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela área econômica do governo livraram Campos das acusações.

Também pesaram contra o pai e o avô acusações de nepotismo. O próprio Campos construiu sua carreira administrativa nos governos do avô. No último lance dessa prática, em 2011, ele trabalhou duramente para nomear a mãe ministra do Tribunal de Contas da União (TCU) e conseguiu que o nome de Ana Arraes fosse aprovado no Congresso. Antes da indicação para o cargo vitalício, ela se elegeu duas vezes deputada federal. Depois de muito tempo, a família ficou sem representantes na política nacional. Apesar da força que tiveram Arraes e Campos, a grande maioria dos parentes optou por outros caminhos, muitos são intelectuais ou ligados ao mundo acadêmico. Violeta Arraes, irmã do patriarca, foi reitora da Universidade Regional do Cariri, no Ceará.

Com a morte de Eduardo Campos na semana passada, a família de Miguel Arraes também perdeu o mais habilidoso de seus integrantes nas artes da política local e nacional. Sem a fama de radical do avô, ele circulava bem por todos os partidos, conhecia a fundo o Congresso Nacional e desfrutava de grande popularidade em Pernambuco, o berço do clã. Ainda sob o impacto da tragédia, seus familiares se recolheram em luto, mas emitiram sinais consistentes de que pretendem continuar em cena. De imediato, o irmão Antônio, também do PSB,  declarou apoio ao nome de Marina Silva como substituta de Eduardo. Na quinta-feira 14, Antonio Campos passou a ser cotado para ocupar a vice de Marina, o que seria uma maneira de perpetuar o clã. Também foi ventilado o nome da viúva, Renata Campos. Outro a despontar como herdeiro político foi o mais velho dos cinco filhos de Eduardo Campos, João Henrique, 20 anos. Durante a semana, o primogênito divulgou um comunicado à imprensa com a promessa de que lutará pelos ideais do pai. Filiado ao PSB e militante partidário, o rapaz há alguns meses pensava em se candidatar a deputado estadual, mas desistiu, aconselhado pelo pai a terminar os estudos. Os gestos da semana passada demonstram que a tradicional família nordestina já tem engatilhado sucessores na política.

Fotos: Pedro Dias/Ag. Istoé, Aluisio Moreira/Divulgação; Divulgação; Anderson Stevens/Eleven/Ag. o Globo; André Dusek/Estadão Conteúdo; Adriano Machado,Reprodução/Facebook; Bruno Stuckert/Folhapress; Josenildo Tenório/Istoé, Newton Aguiar/estadão conteúdo; Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press; Alexandre Severo; Clélio Tomaz/LeiaJaImagens