Na capital do candomblé, uma guerra de atabaques agita os quase seis mil terreiros da Bahia, transformados em um barulhento termômetro do ocaso de Antônio Carlos Magalhães. Senador com hora marcada para renunciar, pronto para fugir da cassação e da perda dos direitos políticos, Antônio Carlos tenta forjar uma Bahia unida em sua defesa, passando por cima dos chamados “terreiros de oposição”. Comandando 80% dos terreiros da cidade, e controlada com rédea curta pelo carlismo, a Confederação Nacional da Religião Afro-Brasileira tem pressionado os terreiros a batucar em favor de Antônio Carlos Magalhães. Mais do que isso: a “federação” do candomblé, como é conhecido esse cartório que exige alvarás para o funcionamento de terreiros e diplomas para a atuação de pais e mães-de-santo, coletou para um manifesto contra a cassação de ACM a assinatura de 280 centros, entre eles um dos maiores da Bahia, o terreiro Gantois – que atravessa um período de sucessão desde a morte de Mãe Menininha e de sua filha, Mãe Creusa. Líderes dos “terreiros de oposição”, centros que não se vinculam ao governo carlista e apóiam a cassação de ACM, contam que vivem diariamente o medo de serem fechados. “Existe uma caça às bruxas nos terreiros independentes”, conta Gilberto Leal, do Centro de Estudos das Populações Afro-Indo-Americanas da Universidade Estadual da Bahia. Quem não tem do que reclamar são os criadores da Feira de São Joaquim, uma das maiores da cidade, vendendo como nunca seus bodes – animal usado para alimentar Exu em trabalhos contra a cassação de Antônio Carlos.

“Baiana de esquerda sofre”, conta uma mãe-de-santo em seu pequeno terreiro, cercada de quadros de santos e orixás, a síntese do sincretismo baiano. Ela tem sido visitada por um ‘caboclo’ que insiste em lhe dizer para tomar todo o cuidado com ACM. “Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei”, diz um pai-de-santo que não consegue ajuda da Prefeitura de Salvador para seu terreiro cheio de goteiras depois que passou a fazer “lavagens” para políticos de oposição. Ele também não assinou o manifesto pró-ACM. “É uma chantagem. O terreiro que se rende a Antônio Carlos recebe ajuda. Os pais e mães-de-santo independentes, que não se submetem, ficam na pobreza”, diz a deputada estadual Alice Portugal (PCdoB), uma das líderes da oposição ao carlismo na Assembléia Legislativa.

Sem partido – Um dos pais-de-santo mais ouvidos em Salvador, Sivanilton Mata, o PC, 37 anos, os últimos nove como babalorixá do Ylé Oxumaré, conta que não assinou o manifesto porque é contra o envolvimento do candomblé com política. “Meu terreiro não faz política partidária, somos voltados para a parte religiosa”, diz PC. Localizados em casas e barracos nos bairros pobres de Salvador, onde se concentra a população negra, os terreiros dependem muitas vezes de ajuda do município para sobreviver. Mas o barulho feito pelos terreiros que não aderiram ao carlismo é minimizado pelo “babá” Aristides Mascarenhas, do terreiro Iê Axé Opô Ajagunã, que tem pedido aos orixás que preservem o mandato de ACM. “Os tambores contra Antônio Carlos são minoria. A grande maioria dos terreiros toca por ele”, acredita Aristides, que preside a “federação” e diz ter uma dívida com Antônio Carlos, que doou o prédio no Pelourinho que serve de sede para a entidade. “Tem terreiro que já foi muito beneficiado pelo governo”, reconhece.

Enquanto os tambores ecoam nas noites de Salvador, caem, uma a uma, as tentativas de ACM de mostrar que a Bahia está unida na defesa de seu mandato. O governo carlista bem que tenta pressionar artistas, grupos e blocos, que dependem do Carnaval oficial e de programas bancados pelo Estado, a assinar manifestos de apoio a seu mandato. Mas não consegue impedir a multiplicação de atos espontâneos como o de Juliana Caymmi, 25 anos, neta de Dorival Caymmi, que na quarta-feira 23 se somou a 15 mil manifestantes no Farol da Barra em um dos maiores atos públicos contra ACM. “Nós somos o último Estado da Federação a se libertar. A queda de Antônio Carlos é o início da alforria baiana”, compara o jornalista Samuel Celestino, 56 anos, um dos mais respeitados comentaristas políticos do Estado, que assina há 13 anos uma coluna no jornal A Tarde.

“Não precisamos de senhor, não somos mais escravos, nem vamos permitir que a Bahia continue sendo uma senzala. A negrada veio pra rua pra dizer que não quer mais ACM”, fez coro Olívia Santana, 34 anos, da coordenação da Unegro (União de Negros pela Igualdade), uma das dezenas de movimentos negros que saiu às ruas de Salvador na noite de terça-feira 22 para pedir a cassação de Antônio Carlos Magalhães. Também queriam responder aos manifestos que têm circulado com o apoio de entidades negras a ACM. “João Jorge do Olodum e Vovô do Ilê Ayê fazem parte de um grupo que acredita que somente se consegue alguma coisa na Bahia puxando o saco do senador. Esquecem que o movimento negro é muito maior do que eles”, diz Olívia. Os 300 militantes do MNU (Movimento Negro Unificado), Unegro, Niger Okan e outros grupos reunidos na Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen) fizeram uma passeata, ao som de hinos afro, caminhando da Praça da Piedade até o Pelourinho para levar até a entrada da Igreja do Rosário dos Pretos 81 velas vermelhas (cor de Xangô, orixá da Justiça) representando os 81 senadores da República. Ali receberam o apoio de pessoas como o desempregado Antônio Carlos de Abreu, 50 anos, que desabou sobre os joelhos para implorar a Ogum e a Santo Antônio que ACM perdesse o mandato. “Já fiz promessa, pedi a Deus e ao diabo para Antônio Carlos ser cassado”, contou. Alessandra Rodrigues dos Santos, 11 anos, aderiu ao ato por um motivo bem diferente. “Não devia ter esse apagão, ninguém vai poder brincar, nem ver novela”, desabafou, sinceramente magoada.

Duelo – De tempos em tempos, surgem novos apoios “voluntários” a ACM na Bahia. O mais recente foi de reitores de universidades particulares, prontamente rebatido pelos estudantes destas instituições. A renúncia anunciada de ACM, marcada para esta quarta-feira 30, transforma de vez a Bahia em palco importante para 2002. Entusiasmado pelas manifestações cada vez mais numerosas na terra do carlismo, Luiz Inácio Lula da Silva, eterno candidato do PT à Presidência, já pensa em participar do próximo ato, na quinta-feira 31. Já sem mandato, ACM vai desembarcar no mesmo dia em Salvador para uma festa que já está sendo preparada pelo PFL, com o apoio de sete trios elétricos. Vai lançar sua candidatura ao governo da Bahia, coisa que já ensaiou na sexta-feira 18 em Feira de Santana, quando garantiu que o povo o aclamaria nas urnas de novo. “Os baianos me fizeram segurar e sustentar esta luta que vai até 2002, quando vamos vencer o Senado e o governo do Estado”, tentou profetizar ACM. Mas os atabaques continuam tocando. E quanto mais são ouvidos, mais parecem anunciar novos tempos para a Bahia.

“A Bahia vive uma ditadura disfarçada”

Com um barrigão de seis meses de gravidez, cansada da viagem de São Paulo até Salvador, a carioca Juliana, 25 anos, subiu com dificuldade os 11 degraus do carro de som, agarrou o microfone e soltou a voz para uma multidão de 15 mil pessoas, no Farol da Barra. Ela se confundia com os manifestantes que se revezavam discursando, cantando, lendo poesias e fazendo repentes contra Antônio Carlos Magalhães. Só que Juliana é neta de Dorival e filha de Danilo Caymmi, família de músicos e compositores que é a mais pura tradução da própria Bahia.

ISTOÉ – Por que você está aqui?
Juliana Caymmi – Fui convidada por amigos do PT e do MST e não poderia faltar neste momento histórico. Vim não como cantora, mas como cidadã que quer o fim do que há de mais podre na política baiana.

ISTOÉ – Como você viu o apoio de alguns artistas a ACM?
Juliana Caymmi – Não posso julgar os artistas que fizeram isso, mas sabemos que quem não entra no esquema carlista sofre boicote. A Bahia vive uma ditadura disfarçada, mas o artista não pode virar as costas para o povo.