A maioria dos londrinos, em 1994, dizia desconhecer a usina de eletricidade de Bankside, uma caixa de tijolos de 12,5 mil metros quadrados, com uma enorme chaminé no centro, pesadamente ancorada às margens do rio Tâmisa, bem em frente à Saint Paul’s Cathedral, um dos locais mais visitados de Londres. Desde o último dia 12, porém, o lugar saiu oficialmente do anonimato. Depois de sofrer uma cirurgia plástica interna, que consumiu seis anos e 134 milhões de libras esterlinas (cerca de R$ 375 milhões) – e uma ligeira maquiagem na sua fisionomia básica –, a estação de luz passou a ser universalmente conhecida como Tate Modern, o maior museu de arte contemporânea do mundo, espécie de sucursal da histórica Tate Gallery. Uma recauchutagem idealizada nas pranchetas de dois arquitetos suíços relativamente desconhecidos, Jacques Herzog e Pierre de Meuron, elevou sua falta de pretensão à condição de monumento. No momento, o espaço abriga 600 obras e deverá receber dois milhões de visitantes por ano, com acesso gratuito à maior parte de suas sete galerias.

Agora, a casa de força transformada em gerador de cultura é tida como o maior símbolo da entrada definitiva do Reino Unido na modernidade do século XXI. Capitaneados pelo primeiro-ministro Tony Blair, que fez do slogan “modernizar a todo vapor, sem perder a tradição” uma plataforma política vencedora, os ingleses abraçaram a mudança como se fosse tábua de salvação. E, numa terra tão chegada a uma coroa, a Tate Modern é a glorificação deste conceito – um prédio dos anos 50, moldado em padrões que vão do art déco ao clássico pré-modernista. Nem todos gostaram da idéia, é claro. Reclamou-se da criação de um museu exclusivo para abrigar obras modernas e contemporâneas. Acontece que a Tate Gallery, criada em 1897 por sir Henry Tate, só podia mostrar 20% de seu acervo do século XX nas instalações de Millbank, do outro lado do rio. Nada mais justo, portanto, que numa terra endinheirada e com respeito pela cultura se erguesse um museu de características monumentais.

Aranha grávida – O cavernoso hall de entrada da Tate Modern é iluminado por luz artificial, saída de enormes retângulos de vidro, e luz natural, vinda do teto também de vidro, acrescido na reforma. Seu vão principal quase evoca a fabulosa Galleria Vittorio Emanuele, de Milão. Só que com uma gigantesca aranha grávida em seu interior. É uma das variações do mesmo tema feita pela escultora francesa radicada nos Estados Unidos, Louise Bourgeois, e emprestada para a exposição temporária de inauguração. Além do aracnídeo de metal, existem duas torres de ferro com escada circular que levam ao teto, onde três espelhos gigantes dão diferentes panoramas do lugar. A obra chama-se Toi et moi: I do, I undo, I redo, e é assinada pela mesma artista.

Com o acréscimo de mais duas caixas menores de vidro que servem de teto, o pé direito da Tate Modern ganhou dimensões mais impressionantes. No total são sete andares, sendo três deles com duas galerias cada, além de salas de leitura e locais de descanso com vistas magníficas do Tâmisa e da Saint Paul’s Cathedral. No primeiro piso está o hall; no segundo, o mezanino e o auditório; do terceiro ao quinto, as galerias de exposição; no sexto, escritórios e sala para membros; e no último, um restaurante e sala de recepções. Os vários níveis criam ilusões dimensionais. Entre os andares, o acesso é por escadas-rolantes. A composição das galerias também é inovadora. Em geral, os museus tendem a mostrar suas coleções de acordo com três conceitos: cronologia, escola de arte ou histórico de cada movimento ou estilo. Tate Modern instaurou linhas mais radicais, dividindo as obras em quatro módulos temáticos principais: natureza-morta/objeto/vida real; paisagem/matéria/ambiente; nu/ação/corpo; e história/memória/sociedade.

Opostos – Segundo os novos critérios, é possível colocar lado a lado, por exemplo, trabalhos de escolas antagônicas e de gente tão diferente como o arquiteto modernista Le Corbusier e o artista pop Roy Lichtenstein. Os modernistas pregavam o desprezo à arte decorativa enquanto o pessoal pop acreditava exatamente no contrário. A mistura destes opostos surpreendentemente acerta mais do que erra e cada galeria ganha uma dinâmica nervosa e genial. Na segunda sessão, o paisagismo tão adorado pelos ingleses ganha roupagem absolutamente diferente e provocativa.

Paisagem/matéria/ambiente traz telas com texturas ricas, objetos feitos de materiais estranhos e principalmente instalações inovadoras como Britain seen from the north (1981), do inglês Tony Cragg, que reproduz com cacos de louça, discos quebrados, pedaços de mobília e outros fragmentos uma figura humana e o mapa da Inglaterra sob a perspectiva vista do norte.

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Passa-se então pelas duas galerias do quarto andar, o único com entrada paga (três libras), e a exposição Between cinema and a hard place, com instalações temáticas que apresentam os vários aspectos do entretenimento como fio condutor. Ali encontra-se a divertida escultura Towards the corner (1998), do espanhol Juan Muñoz, montada com sete homenzinhos calvos, muito parecidos entre si, que ocupam arquibancadas, rindo à toa, quem sabe dos visitantes. Outro destaque em meio à coletânea de tanta qualidade é a bem-sucedida e criativa instalação Cold dark matter: an exploded view (1991), da inglesa Cornelia Parker. Suspensos através de fios invisíveis vêem-se vários detritos, principalmente pedaços de madeira, iluminados por uma única lâmpada numa sala escura. O bloco todo é compacto e dá a impressão de estar explodindo, com suas sombras projetadas como se fizessem parte desta expansão.

Assinaturas de brilho – As duas últimas galerias, no quinto andar, são as de maior sucesso, com obras mais renomadas. Em história/memória/sociedade e principalmente em nu/ação/corpo admiram-se mestres do calibre de Pablo Picasso – com a tela Weeping woman –, Piet Mondrian, Henri Matisse, Auguste Rodin – e seu célebre O beijo, dando as boas-vindas –, Salvador Dalí ou Andy Warhol. Há também fotos, esculturas e uma magnífica sala exclusiva para o inglês Francis Bacon, imbatível cronista da angústia humana. A lista de itens e nomes espetaculares é tão longa quanto os metros a serem percorridos. O crítico da revista Time Out, por exemplo, disse que levou quatro horas – “sem parar nem para fazer xixi” – para dar cabo da Tate Modern. Quatro horas é pouco, principalmente considerando que os ingleses esperaram quase 100 anos para ganhar seu espetacular museu de arte contemporânea.


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