Segundo estimativas dos especialistas em energia, o racionamento precisará reduzir o consumo em até 35% se a estiagem se prolongar, ou pelo menos em 20% se as chuvas forem normais. Isso é indispensável para evitar que o nível dos reservatórios das hidrelétricas, atualmente com apenas 30% da capacidade, chegue no final de novembro – início do período de chuvas – com menos de 10%. Nesse caso, grande parte do Brasil poderia ficar totalmente sem energia por um mês ou mais – um cenário de apocalipse. É provável que o racionamento se prolongue pelo menos até o primeiro trimestre de 2002, para gerar certa margem de segurança nos reservatórios e evitar novo racionamento em plena campanha eleitoral.

Segundo o Ministério das Minas e Energia, para cada 1% de corte no consumo, a indústria do Sudeste pode perder US$ 1,5 bilhão, ou 0,25% do PIB. A indústria usa os empregos e sua contribuição para a balança comercial e o PIB como argumento para baixar sua cota de racionamento a no máximo 15% e aumentar a cota de racionamento dos outros: “as residências, os teatros, os bares da Vila Madalena” (bairro boêmio de São Paulo), nas palavras de Paulo Ludmer, presidente da Associação dos Grandes Consumidores de Energia Elétrica (Abrace), que reúne 51 grupos eletrointensivos que consomem 20% da eletricidade do País. “É melhor fechar a Votorantim ou o circo?”, perguntou Euclides Scalco, um dos coordenadores da Câmara de Gestão da Crise de Energia (CGCE) e presidente da Itaipu Binacional, quando questionado sobre a proibição da iluminação de espetáculos noturnos.

Destruindo valor – A resposta não é tão óbvia quanto a pergunta implica. Há especialistas em energia defendendo exatamente isso: “Cortar mais de quem é eletrointensivo é seguramente melhor que atingir toda a população”, diz o professor José Goldemberg. Fala de setores como os de alumínio, cloro-soda, álcalis, aços longos, gases industriais e ferro-ligas, para os quais a eletricidade é praticamente a principal matéria-prima. Sua participação no consumo de energia é muito maior que sua contribuição para o PIB ou a geração de empregos. Sete setores que representam 86% do consumo eletrointensivo – alumínio, siderurgia, papel, celulose, ferro-liga, cloro-soda e cimento – respondem, juntos, por menos de 1% do emprego total. Segundo a relação custo-benefício deste momento de crise, pode fazer sentido penalizar mais alguns desses setores para poupar o resto da economia, ainda que a balança comercial seja prejudicada.

A indústria de alumínio primário é o melhor alvo de um corte profundo: seis empresas consomem 6,3% de toda a eletricidade do País para gerar 2,5% das exportações – 0,3% do PIB – e mero 0,03% dos empregos, não muito mais que os 195 pequenos parques de diversões do Brasil, que consomem muito menos e não podem funcionar com as medidas de racionamento já decretadas.

Cada uma das mais de 100 mil toneladas de alumínio produzidas todo mês consome 15,3 MWh, o equivalente ao consumo mensal de 60 famílias de classe média. Considerando que hoje a tonelada do alumínio custa pouco mais de US$ 1,5 mil e o custo dessa eletricidade no mercado atacadista é da ordem de US$ 3 mil, a indústria de alumínio está destruindo valor, empobrecendo a nação e exportando a preço vil eletricidade de que o País necessita desesperadamente para gerar empregos e salvar vidas.

Para o consultor Joaquim Francisco de Carvalho, há muito o governo deveria ter limitado a produção às necessidades do mercado interno – 25% da produção total – e liberado o resto da energia para fins mais vitais. Num momento de crise, essa proposta ganha mais lógica. Não é preciso parar a indústria de artefatos e embalagens, que gera a maior parte dos 48 mil empregos e da contribuição de 1% do setor de alumínio para o PIB, pois ela utiliza apenas 20% da produção do metal e atende a quase dois terços de suas necessidades (78%, no caso das latas) com a reciclagem, que consome relativamente pouca energia.

Viva o circo – As ferro-ligas (3% do consumo) também poderiam dar uma contribuição menor, mas substancial, para a redução do consumo se produzirem só para o mercado interno. Em outros setores eletrointensivos, porém, a exportação não é tão grande e a importância para o resto da cadeia produtiva é maior. Fechar toda a indústria eletrointensiva reduziria o consumo total a 20%, mas comprometeria grande parte da economia: os aços, por exemplo, são vitais para a construção e a indústria metalúrgica; o cloro-soda, para grande parte da petroquímica; e os gases industriais, para alimentos, metalurgia e hospitais. Nesses setores em que energia é parte importante de seus custos e sua economia sempre foi uma preocupação, só se corta consumo cortando produção. Para muitos deles, a melhor contribuição seria o investimento em co-geração, isto é, a geração de eletricidade a partir de calor e vapor, que são subprodutos naturais de sua própria atividade. Segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), existe um potencial de 10-15% de co-geração na siderurgia a coque, 4-6% na siderurgia a carvão vegetal e 15-20% no setor de petróleo, por exemplo.

Há boas razões para poupar a maior parte da indústria não eletrointensiva (23% do consumo nacional), na medida em que possa otimizar o rendimento de cada quilowatt em termos de geração de valor e de emprego, e às vezes também em termos de contribuição para a balança comercial. Não se devem desprezar, porém, as possibilidades de melhorar a eficiência do consumo nessas fábricas, que, devido à pequena participação da eletricidade em seus custos (até 5%), tendem a descuidar de poupá-la. Para o MCT, na maioria das indústrias é possível economizar 15% a curto prazo, sem contar a co-geração. A eficiência da maioria dos motores elétricos, por exemplo, é reduzida em até 50% devido a superdimensionamento ou operação inadequada.

Os números frios sugerem que vale a pena, sim, fechar fábricas de alumínio para manter funcionando circos e teatros, que geram um bocado de emprego com um pouquinho de luz. Comércio e serviços privados consomem bem menos (16% da eletricidade, contra 43% das indústrias), empregam mais (40% do emprego, contra 19%) e têm uma participação no PIB pouco menor que a soma de todas as indústrias (29%, contra 35%) e maior que a da indústria de transformação (21%). Não é verdade que comércio e serviços podem se arranjar acendendo velas: até o pequeno comércio depende hoje de caixas registradoras eletrônicas e leitoras ópticas – mas só os grandes supermercados têm geradores próprios. A interrupção da refrigeração em açougues, padarias, lanchonetes e supermercados é, na melhor das hipóteses, uma fonte de prejuízos insensatos e, na pior, uma catástrofe para a saúde pública. Serviços financeiros, escritórios, lazer e entretenimento simplesmente não funcionam sem eletricidade.

Mas sem exageros: no início de maio, o presidente da Associação Comercial de São Paulo, Alencar Burti, chegou a propor: “Vamos acender uma vela para preservar um emprego”, isto é, aumentar o corte dos consumidores residenciais para poupar a indústria e o comércio. Mas nenhum corte razoável do consumo doméstico seria suficiente. Para que essas empresas pudessem manter o consumo do ano passado – o que já é um corte, pois esse consumo vinha crescendo a um ritmo de 5,9% ao ano para a indústria e 8,7% ao ano para o comércio – os consumidores (com crescimento de 2,7% ao ano) e o setor público (crescimento praticamente nulo) teriam de arcar com uma redução de mais de 50%. Com um corte desses, iria para o inferno não só a vida do consumidor, mas também boa parte do comércio e da indústria – incluindo os setores de eletrodomésticos, alimentos congelados e comunicação. É preferível reduzir os excessos do comércio e dos serviços com iluminação, ar condicionado, anúncios luminosos e trabalho aos domingos.

Arquitetar economias – A melhor contribuição dos serviços e do comércio seria, porém, melhorar seus prédios e instalações com arquiteturas que aproveitem a luz, o calor e a ventilação naturais (no lugar da abominável combinação de vidro fumê e ar condicionado), junto com sistemas de controle e automação predial. O MCT estima que a reforma de instalações prediais pode reduzir o consumo de energia em 30% a 40%.

Uma diminuição do consumo residencial em 20% significaria cortar 5,4% do gasto total. Porém, quanto menos já se consome, menor será o corte razoavelmente possível. Do consumo residencial, 20,4% vem de 4,2% das residências que gastam mais de 500 kWh mensais, e 66,1% das 72,3% que consomem de 100 a 500 kWh. Se as primeiras cortarem 35% do consumo, as segundas apenas 10% e se for temporariamente interrompida a produção de algumas indústrias eletrointensivas (a própria associação da indústria do alumínio prefere desligar parte da produção a ficar ligando e religando os fornos), seria suficiente para evitar os apagões.