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RETRATO
Napoleão em tela de David(séc. XIX): uma das preferidas de Kubrick

Num balanço de sua trajetória, o imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) teria escrito: “Que romance daria a minha vida!” Comentando essa frase histórica, o cineasta americano Stanley Kubrick, famoso por filmes como “Laranja Mecânica” e “2001, Uma Odisseia no Espaço”, acrescentou: “Se naquela época já existisse o cinema, ele certamente teria dito filme em vez de romance.” E era justamente um filme, o mais ambicioso jamais concebido sobre Napoleão, que Kubrick preparava quando fez essa observação um tanto óbvia. Era o ano de 1967 e ele pretendia retratar a trajetória de um dos mais famosos estadistas de todos os tempos – de seu nascimento em Ajaccio, na Córsega, ao exílio na Ilha de Santa Helena, passando pela Revolução Francesa, as guerras napoleônicas e, claro, por seu romance com Josefina Beauharnais. Tudo isso em três horas, com direito a batalhas gigantescas, milhares de figurantes e todo o luxo das reconstituições de época. Avaliada em US$ 5,2 milhões (US$ 100 milhões hoje), o mais alto orçamento da época, a superprodução, contudo, não saiu do papel. Durante dois anos, Kubrick leu tudo o que foi publicado em inglês sobre o general (500 livros), colecionou 17 mil imagens relativas ao período de seu governo e às suas aventuras militares e contratou inclusive um professor de história de Oxford, Felix Markham, que era consultado a qualquer momento sobre os assuntos mais comezinhos relacionados ao personagem. Chegou a escolher locações e fazer provas de figurino. A pesquisa encheu 88 caixas que permaneceram 40 anos em segredo na residência do cineasta, nos arredores de Londres. Agora esse material vem pela primeira vez à luz na coleção de livros “Napoleon – The Greatest Film Never Made” (Napoleão, o Maior Filme Nunca Feito), da Taschen.

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Stanley Kubrick

Trata-se de dez volumes embalados numa caixa de couro verde com detalhes dourados e projeto gráfico assinado pelo renomado escritório de design M/M. Foram editados apenas mil exemplares numerados que estão sendo vendidos pelo preço de US$ 700. O primeiro livro a ser aberto é, naturalmente, aquele que traz o fac-símile do roteiro. Já na cena de abertura a surpresa se faz presente: o futuro imperador ainda criança, brincando com um ursinho de pelúcia. Esse mesmo ursinho vai aparecer no final, após a morte de Napoleão, na cama de sua mãe. Mas o que certamente causaria desconforto na plateia é a sequência em que o militar trava conhecimento com Josefina. Na versão de Kubrick, que morreu em 1999, os dois teriam se cruzado pela primeira vez numa orgia. O tópico foi longamente discutido com o historiador inglês, que garantiu ser essa uma prática comum na corte francesa da época. E foi, sem dúvida, uma das razões de a atriz Audrey Hepburn ter declinado do convite para viver a futura mulher do imperador. O livro de documentos traz a reprodução da carta que a “bonequinha de luxo” enviou de próprio punho ao cineasta: “Espero que você entenda e lembre de mim numa outra oportunidade.” Kubrick nunca mais se lembrou. Do lado do protagonista, contudo, a disputa pelo papel foi acirrada. Oskar Werner (de “Jules et Jim”, de François Truffaut) tentou agarrá-lo. Mas Kubrick pendia mais para David Hemmings (de “Blow Up”, de Michelangelo Antonioni). Quando o projeto, bancado pela Metro-Goldwin Mayer, foi paralisado em 1969, três meses antes do início das filmagens (a companhia alegou que os filmes históricos estavam fora de moda), Kubrick recorreu aos emergentes Al Pacino e Jack Nicholson como forma de seduzir os produtores. Tudo em vão. Christiane Kubrick, viúva do cineasta, e Jan Harlan, seu cunhado e produtor, lembraram em entrevistas recentes o profundo abatimento que acometeu o diretor, cujo perfeccionismo chegava às raias da obsessão.

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OBSESSÃO
Os dez livros reúnem fotos, documentos, entrevistas, e o roteiro de Kubrick.

“Ele devorava tudo o que se relacionava ao assunto, ficou possuído por Napoleão”, diz Christiane. Tão possuído que mandou fazer uma cômoda para abrigar centenas de fichas nas quais classificava os personagens, repetindo assim um método de trabalho do próprio imperador. Segundo o ator Malcolm McDowell, protagonista de “Laranja Mecânica”, o diretor incorporou até a mania de Napoleão de alternar sobremesas e pratos salgados numa refeição. Desde então “Napoleão” (o filme) passou a ser conhecido como a sua Waterloo, a batalha perdida pelo grande gênio da estratégia militar.

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