Depois de conviver com ídolos arrogantes no estilo de Macunaíma, o personagem sem nenhum caráter criado por Mário de Andrade para simbolizar os piores comportamentos e vícios do brasileiro, o País tem, de uma só vez, dois ídolos esportivos com características bem opostas a esse modelo negativo: simplicidade, honestidade, solidariedade e, principalmente, bom caráter. Um é produto da classe média, de origem alemã, de Santa Catarina – Gustavo Kuerten, o Guga. O outro teve a vida dura comum aos moradores de qualquer favela ou periferia das cidades brasileiras – o baiano Acelino de Freitas, o Popó, campeão mundial de boxe dos superpenas. Guga, aos 23 anos, tem um patrimônio de mais de US$ 15 milhões, conseguido graças a seus poderosos golpes com a raquete. No domingo 11, ele sagrou-se bicampeão de Roland Garros, um dos quatro torneios de tênis mais importantes do mundo, ao derrotar o sueco Magnus Norman em 3h44m de jogo por 6/2, 6/3, 2/6 e 7/6 (8/6), tornando-se o nº 1 do mundo. Popó, com seus socos demolidores, tem derrubado adversários em série e ganho dinheiro suficiente para tirar a família do barraco, em um morro de Salvador, e levá-la para uma casa confortável. Sua última vítima foi o americano Lemuel Nelson, nocauteado no sábado 10, em Detroit (EUA), no segundo round.

Com histórias de vida e praticantes de esportes tão diferentes, Guga e Popó são muito parecidos quando se trata de caráter, companheirismo, família e amizade. Popó, ao contrário de muitos ídolos que saíram da pobreza para a glória, faz questão de se manter fiel às origens humildes e conservar um estreito vínculo com os pais e irmãos, de quem virou o protetor e arrimo financeiro. Guga, que em termos financeiros não passou pelos mesmos problemas de Popó na infância, desde pequeno convive com a adversidade. Primeiro, enfrentou o drama do irmão mais novo, Guilherme, que nasceu com paralisia cerebral. Depois, aos oito anos sofreu o golpe da morte do pai, Aldo. “A família do Guga é participativa e solidária. Por isso, ele sempre dá um jeito de, nos intervalos entre os torneios, voltar para Florianópolis”, comenta Zena Becker, presidente da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Florianópolis, e amiga dos pais de Guga há mais de 25 anos. “Quando está na cidade, o Guga normalmente traz o Guilherme de manhã para a Apae e o leva para casa no fim do dia. Só não está fazendo isso agora por causa da imprensa”, afirma. Para muitos, esta seria uma ótima oportunidade de aparecer na mídia cuidando do irmão deficiente, ou brincando com os alunos da Apae. Guga descarta isso. Zena lembra que Guga e Rafael, o irmão mais velho, com 25 anos, sempre dividiram entre si, a mãe, Alice Kuerten, e a avó, dona Olga Thümmel, a tarefa de cuidar de Guilherme, que não anda e só se locomove em cadeiras de rodas. A modéstia de Guga também se fez notar na apoteótica chegada ao Aeroporto de Florianópolis, na terça-feira 13. Ele abriu mão do desfile em carro de bombeiros, previsto pelo governo do Estado e pela prefeitura. “Fico até constrangido. Não me vejo como um cara que mereça tanta atenção. Só fico satisfeito em saber que, por minha causa, já se discute tênis nas padarias”, afirmou.

Solidariedade – No mesmo dia, Guga esperou a saída da imprensa para receber uma caravana de alunos da Apae. “Não era uma atitude de autopromoção. Por isso, não permitiu que os jornalistas vissem a cena”, garante Zena Becker. Do mesmo modo, o tenista deixou de visitar o projeto Casas Lares, financiado por ele e coordenado por sua mãe e a equipe da Apae. O projeto prevê a construção de seis casas para moradia de excepcionais adultos que, por morte ou doença dos pais, percam o suporte da família. Guga repassa US$ 200 por partida que joga à Apae. Segundo Zena Becker, sem contar os últimos meses, Guga já doou R$ 70 mil. A primeira casa, que será inaugurada em agosto, vai abrigar seis excepcionais entre 35 e 55 anos e custou R$ 42 mil.

Foto: REUTERS

Na opinião de Popó Guga é omaior ídolo nacional

Os amigos também fazem coro: o campeão é o mesmo de sempre. “A única coisa que mudou foi a conta bancária”, garante Roberto Pires Goulart, 25 anos, professor de tênis que foi adversário de Guga nos tempos de infantil e juvenil. “Mas ele ganhava sempre”, recorda. Roberto acha que o sucesso de Guga facilita seu trabalho com as dezenas de meninas e meninos que buscam seguir os passos do ídolo. “Todo mundo sabe que ele treina sério, busca melhorar os golpes e tem uma atitude vencedora na quadra. E, mais importante, é um excelente caráter. Ruim seria se ele fosse arrogante, mascarado. Isso o Guga, um manezinho da ilha (morador de Florianópolis) como todos nós, nunca vai ser”, afirma. Um dos mais íntimos de Guga, Perseu Trilha Lehmkuhl, garante, no entanto, que Guga mudou. E para pior. “Está cada vez mais várzea”, brinca, referindo-se ao estilo mal ajambrado do amigo. Perseu diz que Guga, apesar disso, se considera bonito e elegante. “Bom, com o dinheiro que ele tem agora, até o espelho dele passou a achá-lo bonito”, admite às gargalhadas. Dinheiro, aliás, parece ser um problema para o desligado Guga. Ele quase nunca leva talão de cheques ou cartões de crédito e sua carteira com frequência está vazia. “Já vi ele pedir uns trocados para a Alice, como fazia antes de ser o número 1”, recorda Zena Becker, da Apae. Com relação ao “estilo”, na quinta-feira 15, Guga reforçou a tese de Perseu ao aparecer com um novo penteado, de trancinhas.
Este espírito descontraído também é uma característica de Popó. “Sou um boa-praça”, se autodefine, sem nenhuma sombra de convencimento. Campeão pela Organização Mundial de Boxe (OMB), a quarta em importância do boxe mundial (num total de 12), Popó garante que ficar famoso não mudou sua maneira de ser. “Sou o mesmo Popó de sempre”, afirma. Seu dia-a-dia comprova isso. Até agora, não se sabe de nenhum caso ou confusão envolvendo Popó, que somente há poucos meses passou a morar sozinho, em uma casa com piscina. Com namorada nova, Eliana Guimarães, filha de um empresário da construção civil, Popó achou que, aos 24 anos, era hora de sair da barra da saia da mamãe, dona Zuleica Freitas. Mas o estômago o faz almoçar com muita frequência na casa dos pais, atrás do famoso feijão de dona Zuleica. “Mas só faço isso depois das lutas, senão engordo muito”, confessa. “Meu filho ainda não percebeu sua importância para o Brasil”, comenta dona Zuleica, com uma indisfarçada ponta de orgulho.

Um soco na miséria – Ela tem do que se orgulhar. A primeira coisa que Popó fez quando começou a vencer lutas e a ganhar dinheiro foi comprar a casa onde a família mora hoje. No passado, ficou a lembrança da casa de um cômodo em um morro na Baixa de Quintas, na periferia de Salvador. “Era duro. Popó e os quatro irmãos dormiam no chão. E eu usava um armário para criar dois ambientes, dando uma ilusão de quarto-e-sala”, recorda, sem saudade, dona Zuleica. A vida do campeão e sua família foi difícil. O pai, Nijalma Jones Ferreira, 63 anos, era apontador do jogo do bicho e o magro orçamento familiar dependia das faxinas e das lavagens de roupa feitas por dona Zuleica. A comida era pouca e, muitas vezes, ela tinha de contar com a ajuda dos vizinhos. Popó e os irmãos pegaram cedo no pesado. Boa parte do físico e da força que ele usa para derrubar os adversários veio do trabalho braçal, carregando areia e blocos de concreto em obras. A boa índole de Popó já chamava a atenção. “A única vez que deu trabalho foi aos seis anos, quando o pai saiu para beber e o levou junto. O garoto bebeu cerveja e chegou em casa passando mal. Dei uma surra e ele nunca mais fez isso, até hoje”, conta a mãe. Popó lembra do caso e conta que tomava as sobras do copo do pai. “Não sabia que aquilo não era guaraná. O bom da história é que nunca mais bebi”, afirma. A família Freitas – pai, mãe e a irmã caçula Jaqueline, 13 anos – mora hoje em uma casa de três quartos, a mesma em que Popó vivia até há pouco tempo. Além da futura mudança de categoria, prevista para dentro de um ano, Popó tem uma outra ambição. Em uma área na favela dos Alagados, em Salvador, cedida pelo governo da Bahia, Popó vai lançar um projeto de auxílio às crianças carentes da comunidade. Será o embrião de novas iniciativas de Popó para ajudar os que são tão pobres quanto ele foi. “Meu sonho é ter uma fundação como a do Ayrton Senna. O povo me adora e tenho de retribuir esse carinho.” Popó confessou ter rezado para que Guga vencesse e pediu à reportagem de ISTOÉ que mandasse um abraço para o tenista. “Sou fã dele. O que ele faz com a bolinha, eu faço com as mãos.”

O amigo do esporte
Foto: Carlos Magno

Gustavo Kuerten fez uma estranha escalada pela parte central das arquibancadas do complexo de Roland Garros, no domingo 11, após vencer o sueco Magnus Norman. “Cadê o Braga?, Cadê o Braga?”, gritava. O esforço terminou num forte e demorado abraço no ex-presidente do conselho de administração do grupo Bradesco, Antônio Carlos de Almeida Braga. Não foi a única alusão do tenista ao empresário. No discurso feito após a entrega do troféu, ele voltou a agradecer ao amigo. “Ele sempre foi um grande incentivador da minha carreira”, reconheceu.

A atitude de Guga recolocou em evidência um dos mais admirados mecenas esportivos que o País gerou. À frente de sua seguradora, a Atlântica-Boavista, e depois na presidência do Bradesco, Braguinha, como é conhecido, esteve por trás da maioria dos projetos esportivos vitoriosos brasileiros nas últimas três décadas. Apostou em carreiras promissoras como as do piloto Emerson Fittipaldi e do tenista Cássio Motta e incentivou atletas iniciantes na natação, iatismo, hipismo, basquete, futebol, futsal e maratona. É um dos precursores da explosão do vôlei no Brasil. Criou o time masculino da Atlântica-Boavista após as Olimpíadas de Moscou em 1980 e garantiu a permanência, no País, de estrelas como Bernard, Renan, Amauri, Bernardinho, Xandó e o técnico Bebeto de Freitas, decisivos na conquista da medalha de prata nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984. Sua busca de disputas esportivas produziu marcas impressionantes. É um dos poucos a ter assistido, nos estádios, a todas as partidas da Seleção Brasileira em Copas desde o Mundial de 1950, no Brasil.

Foto: AFP

Braguinha, que hospedava Guga em suas casas na Europa e lhe dava, a cada vitória, prêmios em dinheiro, comoveu-se com o gesto do tenista em Roland Garros. “É um menino de ouro, um ídolo definitivo. Mas quem merece carinho é o Larri (Passos, técnico do tenista), que é um ótimo profissional”, disse a ISTOÉ.

O piloto Emerson Fittipaldi, bicampeão mundial de F-1 e campeão de F-Indy, foi chamado ao escritório de Braguinha em 1970. “Foi engraçado como anunciou seu apoio. Ele disse: ‘Não sei como vincular uma empresa de seguros a um rapaz maluco que dispara a mais de 200 km/h nas pistas, mas você terá meu patrocínio’”, conta Emerson. Meses depois, foi criado um anúncio em que o piloto admitia voar baixo nas pistas, mas manter cautela fora delas. Um episódio ocorrido no GP da Espanha de 1993 mostra o bom humor de Braga. “Um inglês que o confundiu com o Juan Manuel Fangio (piloto argentino pentacampeão mundial) gritava: ‘Mister Fangio, mister Fangio.’ Braguinha deu o autógrafo e nos perguntou se a assinatura estava bonita. Em seguida, entregou o papel e deu um abraço no senhor, que saiu feliz da vida”, conta Emerson.
Outro amigo de Braguinha, o tricampeão Ayrton Senna, gostava tanto de sua casa de praia em Angra dos Reis, no litoral fluminense, que a acabou comprando. “Considerava o Ayrton como um filho, mas não o ajudei financeiramente. Nunca foi necessário”, esclarece. O ex-tenista Cássio Motta também foi apoiado no início de carreira. “A iniciativa partiu dele”, diz Cássio. Braguinha continua apoiando o esporte. Ele não diz os nomes, mas tem gente que vai a Sydney por sua causa.

Hoje, aos 74 anos, vive em busca do sol, como costuma dizer. Passa o verão europeu em sua quinta em Sintra, Portugal, viaja com frequência às Bahamas e está construindo outra casa em Angra dos Reis, para as temporadas brasileiras. “Vivo para aproveitar as duas melhores coisas da vida: a família e o esporte”, resume.

Eduardo Marini