O Mancha da Candelária, um dos sobreviventes do massacre de menores em frente à igreja mais conhecida do Rio de Janeiro, em 1993, dificilmente poderia planejar uma forma tão dramática para se vingar da sociedade que o marginalizou. Sete anos depois da chacina, aquele brasileiro sem documento chamado Sandro do Nascimento, 21 anos, protagonizou uma das cenas mais violentas já transmitidas ao vivo pela televisão: o sequestro, na tarde da segunda-feira 12, de um ônibus da linha 174, que liga a Central do Brasil à favela da Rocinha. A tragédia aconteceu no bairro do Jardim Botânico (zona Sul), durou quatro horas e meia, terminou com a morte de Mancha e de uma refém e deixou o País em estado de choque. Diante da tevê o brasileiro chorou, protestou, xingou e caiu em depressão ao ver a morte da professora Geisa Firmo Gonçalves, 20 anos. Ela foi morta com quatro tiros na confusão provocada pelo soldado Marcelo Oliveira dos Santos, do grupo de elite da PM, que fracassou ao tentar atingir o bandido. Jogado no camburão, Sandro foi asfixiado e morto pelos policiais. A crueldade do sequestrador, a incompetência da polícia e a sensação de impotência da sociedade diante de uma guerra social não declarada fizeram daquela segunda-feira um marco. O episódio inaugurou mais uma semana de medo e abriu os olhos do País para acompanhar, desolado, uma sequência de tragédias de insegurança pública.

Foto: Tasso Marcelo/AE
A professora Geisa (acima), o excluído Sandro e Marcelo, um PM despreparado, se encontram no ônibus 174: morte ao vivo

Longe das câmeras, a violência se espalha pelo Brasil – o índice de homicídios já alcança a alarmante marca de 24,1 casos por 100 mil habitantes, enquanto a média mundial fica em 8,5. Na mesma tarde em que Sandro era estrela na tevê, outro assalto a ônibus na desprotegida avenida Brasil, no Rio, resultou na morte de um sargento da PM. Três bandidos fugiram. Na terça-feira, em Goiânia, uma bala perdida matou Lariza Oliveira, 11 anos, num bairro de classe média. Em Brasília, na Asa Sul, uma troca de tiros entre bandidos e policiais matou Carla Nascimento, de apenas um ano e dois meses de idade. Em Diadema (SP), a decoradora Lilian Miaguti, 41 anos, foi assassinada com três tiros num cruzamento.


Álcool no corpo
– O Rio voltou ao noticiário de tragédias na quarta-feira, em mais um assalto cinematográfico com requintes de crueldade. Em Santa Teresa, zona sul, quatro bandidos invadiram a casa de Elvira Morado Sutton, 85 anos, fazendo sete reféns. Os criminosos bateram, deram coronhadas na cabeça da idosa e jogaram álcool em seu corpo, ameaçando atear fogo. Acabaram presos. No mesmo dia, o comerciante Carlos Bessa e a advogada Mônica Marques Lopes, ambos 46 anos, vítimas de sequestros-relâmpagos, foram assassinados. À noite, a jornalista Selma Schmidt, do jornal O Globo, foi atingida por dois disparos num tiroteio próximo à entrada do túnel Rebouças, principal via de ligação entre as zonas norte e sul do Rio. Em Vila Carrão, bairro da zona leste de São Paulo – cidade que registrou no ano passado 66 assassinatos por 100 mil habitantes, disputando com o Rio o ranking da criminalidade – o vendedor Carlos Alberto Afonso, sua mulher e duas filhas foram tomados como reféns. Os dois bandidos foram baleados e presos.

O pânico voltou às ruas da zona sul carioca na quinta-feira. Baleado pelo cabo da PM Paulo Almeida dentro de um ônibus, o assaltante Vagner Arruda saiu pelas ruas de Copacabana correndo e atirando. Foi preso, mas seus dois cúmplices fugiram. O mais grave é que não foi uma semana excepcional, a não ser pela cobertura televisiva de quatro horas do sequestro do ônibus na segunda-feira. “Tudo isso é traumatizante. O Rio é lindo, mas virou uma cidade inviável”, desabafa a estudante Joana Sampaio Galvão, 20 anos, que decidiu se mudar para Natal (RN) em novembro. No mês passado, o campus de sua faculdade, em Copacabana, foi assaltado. Seis bandidos armados renderam funcionários e alunos para roubar R$ 6 mil. “Ficou até uma marca de bala no vidro da sala de aula”, conta Joana.

Reprodução
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A professora Geisa Firmo Gonçalves, que ensinava artesanato na Rocinha, viveu sua sina em rede nacional de televisão e acabou enterrada em Fortaleza

Venda proibida – Carmem Madruga, 60 anos, mora há 30 em Santa Teresa, bairro cercado por 14 favelas. Ela também decidiu fazer as malas. “Vivemos trancados e os bandidos, em liberdade. Só espero minha filha casar para sair do Rio”, diz. “Vou ficar aqui no máximo mais um ano”, planeja Carmem. Sua filha Ana Paula está às vésperas de se casar e mudar para Itaipava, região serrana do Estado: “Não quero ter filho no Rio, é muita violência.” A sucessão de assassinatos, sequestros e balas perdidas só não alcançou a repercussão do sequestro do ônibus 174 porque não foi acompanhada em tempo real pelos telespectadores. A audiência da segunda-feira foi suficiente para chacoalhar o País e levar as autoridades, como sempre tardiamente, a anunciarem medidas contra a bandidagem. No mesmo dia, o presidente Fernando Henrique Cardoso criticou na tevê a polícia fluminense e prometeu empenho no combate à violência. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou na quarta-feira, após seis meses de discussão, o projeto de proibição da venda de armas. O ministro da Justiça, José Gregori, se apressou para anunciar itens do Plano Nacional de Segurança Pública. O Palácio do Planalto, insatisfeito com a falta de medidas de impacto e de curto prazo, deu a entender que o ministro se precipitou e que nada está concluído. O anúncio do plano será na terça-feira, 20. Inclui treinamento das polícias e punição rigorosa para policiais bandidos.

Audiência – Se sair do papel, o plano, talvez, venha a evitar que operações policiais terminem de forma tão deprimente quanto à do ônibus 174. O Batalhão de Operações Especiais (Bope), teoricamente a unidade mais preparada da PM fluminense, levou para o local da tragédia apenas dois atiradores de elite, numa ação envolvendo cerca de 100 homens. “Se eu tivesse mais atiradores, as chances de acertar o bandido seriam maiores”, admite o comandante do Bope, tenente-coronel José de Oliveira Penteado. Ele jura não ter dado a ordem do tiro a Marcelo. “Nossos homens são treinados para ter autonomia e tomar decisões”, pondera o oficial.

 

A cobertura da mídia ao episódio teve resposta imediata do público. A Rede Record transmitiu ao vivo do Jardim Botânico, de 17h20 às 19h20, com a narração de José Luiz Datena (leia reportagem à pág. 118) e trilha sonora dramática ao fundo. Resultado: um salto para picos de 24 pontos no ibope, enquanto a Rede Globo tinha média de 26 pontos com sua programação normal e flashes do episódio. “Não quisemos correr o risco de mostrar um assassinato ao vivo”, disse o diretor de Comunicação da Globo, Luiz Erlanger. Os jornais cariocas que na terça-feira estamparam fotos do caso aumentaram as vendas. A procura pelo Jornal do Brasil dobrou e O Globo mandou às bancas uma reimpressão, o que não acontecia desde a morte da atriz Daniella Perez.

Foto: Domingos Peixoto/Ag. O Globo
O cabo Almeida, herói do dia, prefere não mostrar o rosto

O estardalhaço despertou a atenção de jornalistas estrangeiros que estavam no Rio para um congresso internacional. “Uma cobertura com fotos tão chocantes nunca apareceria nas primeiras páginas de meu país”, espantou-se o australiano Julian Zaraka. A professora Elizabeth Rondelli, do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação da UFRJ, avalia que a mídia buscou o sensacionalismo. “Mas tiveram o mérito de reabrir o debate sobre a segurança”, pondera. O editor-executivo de O Globo, Rodolfo Fernandes, discorda: “A cobertura foi equilibrada e os jornalistas tiveram a nobre missão de apontar os erros de uma operação desastrada.”

Atentos à reação popular, FHC e o governador Anthony Garotinho (PDT) falaram sobre o assunto pela tevê. Fernando Henrique, que acompanhou o caso, pela primeira vez desceu à sala de imprensa do Planalto para se manifestar sobre o assunto. “Passei o dia deprimido por ver seguidamente cenas de violência”, disse. O governador começou elogiando a ação policial, mas logo mudou de idéia, classificando-a como um fracasso e trocando a chefia da PM. Garotinho fez incontáveis reuniões. Criticou sua polícia e prometeu mais verbas, programas e ações especiais, além de indenizar os parentes de Geisa. O governo federal também prometeu verbas para as polícias. Rejeitando mais uma vez a proposta do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) de colocar o Exército nas ruas, FHC renovou a promessa de usar as Forças Armadas para controlar as fronteiras e o litoral para evitar o contrabando de armas e o tráfico de drogas. De novo, o governo esperou uma tragédia para anunciar o que sempre foi sua obrigação.

Foto: Domingos Peixoto/Ag. O Globo
O cabo Almeida, herói do dia, prefere não mostrar o rosto

Se as boas intenções já tivessem se transformado em ações, grande parte das tragédias que atingem os brasileiros seria evitada. O episódio do ônibus 174 é sintomático, a começar pela origem do sequestrador. Na Chacina da Candelária, não faltaram promessas de assistência a meninos de rua. Nada foi feito e Sandro, como muitos, transpôs a linha que separa a infância abandonada da marginalidade. A crise social que produziu o Mancha parece mais uma vez ter passado despercebida pelas autoridades, que ao longo da semana só ressuscitaram planos destinados exclusivamente à repressão. Não há dúvida quanto à necessidade de melhorar a qualidade das polícias brasileiras. Sem ações para diminuir a exclusão, medidas repressivas têm poucas chances de impedir o surgimento de novos sandros.

De férias em Portugal, a aposentada Maria do Carmo Amaral, 72 anos, acompanhou pela tevê o drama do Jardim Botânico e decidiu não voltar mais ao Brasil. Ela morava na Tijuca e foi assaltada quatro vezes em ônibus. Talvez falte às autoridades ouvir brasileiros como Maria do Carmo: “Não há um projeto de combate à violência. Não basta pôr a polícia na rua. É preciso agir também contra a miséria”, ensina.

Deu certo

 
Deu errado
O assalto a uma loja em São Paulo, em outubro de 1990, foi interrompido pela polícia. Um dos ladrões tomou como refém Luciana Oliveira, 14 anos. O sargento Falcão chegou carregando sua câmara VHS. Durante três horas, simulou trabalhar na tevê. De repente, ele saltou sobre o assaltante, imobilizando, com a mão, o tambor do revólver. “Eu estava autorizado a agir pelo comandante da operação”, lembra Falcão.
“Foi como um replay, dez anos depois”, diz Ana Caringi. “Só mudou o cenário, pois minha filha estava dentro de casa e essa garota em um ônibus”, completa Pedro Caringi. Em março de 1990, Adriana, 23 anos, foi transformada em escudo por um assaltante. Depois de quatro horas, um atirador de elite da PM disparou contra o bandido. O tiro atravessou a cabeça do ladrão, mas também atingiu Adriana, matando-a na hora.


Mancha sonhava com um emprego
Foto: Luis Bittencourt/ Folha Imagem

Desde o início de sua vida, Sandro do Nascimento parecia destinado à tragédia. Nasceu há 21 anos em um dos enclaves cariocas dominados pela pobreza e pelo tráfico de drogas, a favela Nova Holanda. Ali viveu com a mãe até os três anos, quando foi entregue a outra família. “Eu não tinha dinheiro e dei o garoto para minha amiga Marilena criar. O nome real dele era Alex”, conta a faxineira Elza da Silva. Aos sete anos, Sandro perdeu a mãe adotiva e foi morar nas ruas. Segundo dizia, ela teria sido assassinada. Passou a viver de esmolas e pequenos furtos. Nas esquinas, ganhou o apelido de Mancha, por causa da marca que clareava parte de seu rosto negro. Numa noite ao relento, em julho de 1993, escapou da morte por pouco. Correu ao ver policiais militares atirando contra um grupo de garotos. Oito amigos seus morreram no local, na famosa chacina da Candelária. Ao entrar no ônibus da linha 174, Sandro cumpriria o destino trágico que sempre o perseguiu.

Sua namorada, de 23 anos, também sobrevivente da chacina, era a pessoa mais próxima. “Ele era calmo, falava pouco. Quase não reconheci na tevê aquele homem possuído”, diz. Há dois meses, os dois passaram três noites em um hotel do Centro. “Ele fumava maconha o tempo todo”, conta a namorada. Deu a ela um anel e recebeu em troca uma pulseira, que usava no dia do assalto. Gostava de jogar capoeira e tinha no braço esquerdo uma tatuagem com a figura do diabo. Apesar de ter duas condenações – furto e assalto a mão armada – e ser fugitivo da 26ª Delegacia Policial, Sandro ultimamente dormia sob o viaduto do Catumbi.

Foto: Miraldo Araujo/AJB
Foto:Luis Bittencourt/Folha Imagem
Sandro menino, com Yvone Bezerra, depois da chacina da Candelária; e na tragédia do Jardim Botânico

“O destino de Sandro é o da maior parte dos sobreviventes da Candelária. Eles próprios acreditam que um dia morrerão de forma violenta”, diz a artista plástica Yvone Bezerra de Melo – que desde antes da chacina acompanhava os meninos de rua. No início de junho, ela recebeu a visita de Sandro. O rapaz pediu ajuda para arrumar emprego ou um curso profissionalizante. “Eu não tinha nada no momento, disse para ele voltar depois”, explica.

Aos amigos, Sandro contava o sonho de ter a própria barraca de cachorro-quente para se sustentar. Há três anos, ao reencontrar a suposta mãe, ele revelou o desejo de nunca mais catar comida no lixo e de mudar de vida. Não mudou. Sumiu de novo e Elza nunca mais o viu, até ligar a TV para acompanhar o seqüestro do ônibus. Reconheceu então o seu Alex. “Pensei em ir até lá conversar com ele”, diz Elza. Não deu tempo. Elza só voltou a ficar cara a cara com o filho no IML. Não pôde liberar o corpo por não ter os documentos do filho. Soube que o corpo só poderia ser liberado dois dias depois. Provavelmente para ser enterrado como indigente.

Destino trágico
Dos 62 sobreviventes da Chacina da Candelária, 39 foram assassinados (a maioria pela polícia), dez estão presos e oito sumiram
** Alguns casos **
* João Fernando Caldeira da Silva, o Bilinha
Foi assassinado há mais de um ano com um tiro no peito. O disparo teria partido de um taxista quando Bilinha assaltava outro carro
* Fábio Gomes de Azevedo, o Barão
Tornou-se traficante. Morreu em 1997, assassinado dentro de uma loja de jogos eletrônicos no morro do Turano
* Romualdo José Jorandi
Morreu em 1997, alvejado por dois tiros, quando tentou assaltar um motorista no bairro de Botafogo, zona sul do Rio
* Beatriz (sobrenome desconhecido)
Morreu em meados de 1997. Testemunhas a viram ser levada por vários homens dentro do porta-malas de um carro

Na elite por R$ 562 mensais

 
Foto: AFP/Renato Velasco

A vida do policial Marcelo Oliveira dos Santos, 27 anos, não prometia nenhuma mudança substancial que pudesse tirá-lo da casa modesta em que mora com os pais num bairro pobre de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Mesmo sem grandes perspectivas, ganhando só R$ 412 por mês mais abono de R$ 150, pode-se dizer que a carreira de Marcelo caminhava bem até a tragédia do ônibus 174 no Jardim Botânico. Na Polícia Militar desde 1996, ele entrou para o Batalhão de Operações Especiais (Bope) há dois anos, quando concluiu o Curso de Ações Táticas como segundo colocado. O curso é a porta de entrada para a unidade de elite da PM do Rio de Janeiro. Depois da ação que provocou a morte da professora Geisa Firmo Gonçalves e desmoralizou a polícia do Rio mundo afora, Marcelo não sabe o que esperar da vida. Na quinta-feira 15, mais magro, abatido e avesso à conversas, ele entrou pela primeira vez no Hospital da PM para dar início a um tratamento psicológico.
Não fosse o serviço público brasileiro um espetáculo interminável de absurdos, estar entre os 230 homens do Bope seria o sonho de qualquer policial. Mas não é. Admirado pelos colegas de farda, o soldado Marcelo aproveitava suas folgas para estudar para concursos públicos. É difícil acreditar, mas o homem que tirou o segundo lugar no curso da unidade policial mais elitizada do segundo Estado mais rico da Federação não tem dinheiro para comprar um carro velho. Marcelo passa até quatro horas por dia andando de ônibus entre a capital e o bairro pobre da Baixada.

“A gente ia dormir e ele ficava estudando. Já fui a bibliotecas pegar livros emprestados para ele”, conta o soldado Marcelo Moraes, 31 anos, que também acompanhava o xará nas sessões de natação no SESC de Duque de Caxias. “Nós, soldados, temos o costume de nos espelhar nos policiais que se sobressaem. Eu me espelho nele e aquilo poderia ter acontecido com qualquer um. Eu faria o que ele fez”, diz outro colega, Luiz Cláudio Ramos, 31 anos. A tristeza de Marcelo preocupa os amigos. “Ele se recusa a comer, anda cabisbaixo e não fala com ninguém”, disse o comandante do Bope, tenente-coronel José de Oliveira Penteado.

O comandante atribui o erro ao stress do soldado. Marcelo ficou uma hora e meia estrategicamente agachado na frente do ônibus, pronto para entrar atirando caso o bandido cumprisse a ameaça e começasse a atirar nos reféns. “Se ele acertasse a cabeça do maldito, viraria um herói nacional e o Bope continuaria sendo a melhor tropa do mundo. Infelizmente, não acertou”, lamenta o comandante.