Uma das maiores autoridades em psicologia do esporte diz que Copa é uma guerra, na qual não se pode perder sem lutar, e que o emocional da Seleção não foi trabalhado direito

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"Não adianta chamar psicólogo a dois dias de
um jogo importante. Psicólogo não é mago", diz

 

No esporte, a vitória ou a derrota são decididas por um detalhe. Nesta Copa, com o passar dos jogos, ficou evidente que a Seleção Brasileira precisava se equilibrar emocionalmente. O maior sinal veio nas oitavas de final contra o Chile. Na partida, o goleiro Júlio César chorou antes mesmo de salvar o Brasil na disputa de pênaltis e o capitão Thiago Silva recusou-se a ser um dos cobradores. “O que leva à derrota é a incompetência em suas múltiplas facetas e a falta da psicóloga desde o princípio junto com o time é mais uma delas”, diz Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Paulista de 52 anos, ela é autoridade em psicologia do esporte no País.

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"O choro do Júlio César no jogo contra o Chile representava a chance
de redenção de um erro de quatro anos atrás ou o sacrifício final"

 

Autora de 18 livros, membro da Academia Olímpica Brasileira, foi supervisora da equipe multiprofissional da seleção olímpica e paraolímpica da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa. Katia opina sobre o que se passa na cabeça de jogadores que disputam uma Copa em casa.

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"Coloca o Zé Roberto Guimarães para dizer aos caras o que é tirar
um time do inferno, como foi com o vôlei feminino
na Olimpíada de 2012, e dar a volta por cima"

 
ISTOÉ

 O que aconteceu com a Seleção mostra que há insegurança no grupo?

 
Katia Rubio

 Nosso atletas sabem ser jogadores do Manchester, do Barcelona, ser campeões por esses clubes, de quem são meros funcionários. A Copa é como uma guerra e para servir à Seleção há que ser soldado. A guerra, o campo de batalha, no Mundial é aqui, onde se fala a mesma língua dos jogadores, onde suas raízes estão fincadas. Eles não sabem ser brasileiros no sentido de não saberem ser soldados do exército do povo. São brasileiros que desaprenderam a ser brasileiros, mas estão voltando a ser Brasil. Qual identidade eles têm com o Brasil, hoje? Pouca! A expressão que marca a relação deles com o Brasil é a saudade. Saudade da comida, da língua materna, da família. Isso prova que, por mais dinheiro que ganhem no Exterior, o coração deles está aqui, mas não sabem o que fazer com a própria alma. Por isso o choro, que é a manifestação incontrolável da alma.

 
ISTOÉ

 O peso da derrota de 1950 entrou nesse jogo emocional? Os jogadores não passaram a sentir mais medo de virar vilões do que se tornarem heróis?

 
Katia Rubio

 Não. O único que talvez tivesse esse medo era o Júlio César. No futebol, o crucificado pela derrota e que fica marcado negativamente nunca é o atacante. O ônus é de quem defende. Fala-se mais do goleiro Barbosa, que levou os gols do Uruguai em 50, do que do Zico, que perdeu o pênalti na Copa de 86. O medo é porque ninguém deve ter falado para os jogadores desta Seleção que perder era possível. Mas perder não é problema. Inadmissível é perder sem lutar. E contra o Chile a Seleção quase perdeu sem lutar.  

ISTOÉ

 Concorda que o maior problema da Seleção é o emocional?

 
Katia Rubio

 Todas as atenções estão sobre a questão emocional. É como se, técnica e estrategicamente, o time estivesse perfeito. Não está! O problema não é psicológico. A Seleção apresentou problemas da ordem do jogo e, depois da partida contra o Chile, pareceu que tudo é psicológico. A questão psicológica é só mais um ponto entre tantos. Não se pode esperar que uma fada chegue à concentração e por encanto faça tudo funcionar. O que leva à derrota é a incompetência em suas múltiplas facetas, e a falta da psicóloga desde o princípio junto com o time é mais uma delas.

ISTOÉ

 O choro de atletas antes de grandes decisões, como demonstraram o capitão Thiago Silva e o goleiro Júlio Cesar, não foi um problema, então? 

Katia Rubio

 O choro é uma reação humana que só pode ser interpretado se soubermos o que o desencadeia. O problema não é chorar, mas usar o choro como justificativa para a fuga do embate. Isso é que não se espera em hipótese nenhuma. Mas o foco se deslocou. Esquece o choro! Esquece o choro antes do hino! Porque é só o juiz apitar o início do jogo e o atleta já esqueceu que chorou. O coração e a cabeça dele já estão dentro do jogo. Não se pode justificar o choro do hino por uma má conduta dentro do campo. O choro do Júlio César no jogo contra o Chile era diferente. Representava a chance de redenção de um erro de quatro anos atrás ou o sacrifício final.

 
ISTOÉ

 Qual é o problema de o capitão da Seleção ter se recusado a cobrar um pênalti contra o Chile?

 
Katia Rubio

 O esporte contemporâneo é uma metáfora da guerra. O atleta vai para a competição para lutar ou morrer. Na guerra do esporte não há empate nem prisioneiros, por isso o que se espera é a luta. Daí, não importa se ele perde, mas é preciso lutar. Para mim e para o povo de uma forma geral, não importa perder, desde que o faça lutando. Quando o atleta se recusa a cobrar o pênalti, está fugindo da guerra. Mas nessa guerra não há fuga. Quando ele se nega a bater o pênalti, é como se estivesse fugindo da guerra e isso deixa desamparada a equipe que lidera.

 
ISTOÉ

 O capitão de uma equipe tem de ser emocionalmente pleno?

 
Katia Rubio

 O bom grupo é aquele que divide as lideranças, porque isso evita o esfacelamento da equipe na ausência de um líder único. Não é raro um mesmo atleta de seleções ser líder expressivo – aquele que mantém o clima emocional do grupo em alta e procura evitar e prevenir conflitos  – e instrumental, o que exerce influência no grupo distribuindo as tarefas e é o elo entre o time e a comissão técnica. O Thiago é um líder instrumental. Para ser um líder afetivo é preciso ter maturidade de segurar a onda das demandas emocionais. E quem fez isso no momento da prorrogação e dos pênaltis contra o Chile foi o Paulinho, mesmo estando na reserva! Ao longo do jogo, vi o David Luiz se mostrando muito mais líder do que o Thiago do ponto de vista emocional. 

 
ISTOÉ

 O que estaria acontecendo com esse grupo da Seleção?

 
Katia Rubio

 São atletas que muito cedo passaram a atuar na Europa e aprenderam a ser profissionais em um grande negócio chamado futebol. Essa experiência ninguém tira deles. Só que Copa não é campeonato europeu ou de clubes. Ela envolve algo chamado identidade nacional e para isso eles não foram preparados emocionalmente. O tipo de embate de uma seleção é diferente do que acontece entre times que nada mais são do que empresas. Jogar com a camisa da Seleção significa levar adiante algo de que eles não têm consciência porque não foram preparados para isso. Por isso o choro no hino! Ali, não é um salário que está em jogo. Mesmo que eles não tenham ideia disso, ocorre um processo inconsciente de entendimento de que aquele jogo é completamente diferente de todos os que já fizeram na vida. É uma novidade. Eles não têm preparo para isso porque a Seleção se reúne apenas dois meses antes da Copa. E, portanto, se dá o descontrole emocional.

 
ISTOÉ

 E o que poderia ajudar nessas horas?

 
Katia Rubio

 Tudo o que os jogadores sentem pelo País está guardado no inconsciente. Aí, eles voltam para uma Copa dentro do Brasil, cantam o hino e esse trabalho foi bem-feito: ensinaram o hino direitinho para essa rapaziada! Nunca vi uma Seleção cantar o hino como esta. Mas o serviço ficou incompleto. Chama o Tite! Chama o José Roberto Guimarães! Caras que tiveram experiências positivas com times desacreditados ou que perderam em momento que não podiam perder. Coloca o Zé Roberto para dizer aos caras o que é tirar um time do inferno, como aconteceu com a seleção feminina de vôlei na Olimpíada de 2012, e dar a volta por cima. Chama o Tite para contar como ele construiu toda a assertividade do Corinthians, que nunca tinha ganhado uma Libertadores na história e teve de enfrentar uma torcida que queria, mas não acreditava ser possível. O que aconteceu com o Corinthians dois anos atrás é semelhante ao que ocorre com esta Seleção. Duvido que a comissão tenha se movimentado em direção parecida.

 
ISTOÉ

 Como deve ser o trabalho da psicologia do esporte em um grupo como a Seleção?

 
Katia Rubio

 A psicologia do esporte não é diferente da preparação física ou do cuidado nutricional. Assim como essas outras especialidades, a psicologia é um trabalho de longo prazo. Da mesma forma que é preciso começar a preparar um atleta do ponto de vista físico para uma competição daqui a três meses ou um ano, deve-se fazer do ponto de vista emocional. O psicodiagnóstico, aquele teste inicial, é só o começo de um processo, o mesmo que acontece com teste de aptidão física. A partir dele, faz-se o plano de intervenção. E, do ponto de vista coletivo, é preciso cuidar das relações interpessoais, do vínculo, da organização grupal e da interação. Isso não se dá de forma breve. Não existem duas intervenções e a coisa acontece. Não! É um trabalho de longo prazo. Não adianta chamar psicólogo a dois dias de um jogo importante. Psicólogo não é mago.

 
ISTOÉ

 Estamos diante de uma Seleção de meninos e não de homens?

 
Katia Rubio

 É muito duro dizer isso. O Michael Jordan diz que o momento da decisão no esporte separa os homens dos garotos e que ele sempre gostou de jogar com homens. O que está explícito aí é que o Jordan quer jogar com quem vai para o embate. É injusto dizer isso dos meninos da Seleção. O problema é de quem os escalou e não de quem está jogando. Quando se tem um grupo jovem, imaturo, sem muita experiência, uma liderança centralizada é fundamental. Porque é necessário dar ao grupo condições para ele seguir adiante. Mas o jogo vai além do jogo. Os interesses comerciais fazem o time jogar em função de um jogador e para isso cria-se uma imagem de liderança e maturidade que não condiz com a realidade. O Neymar não é líder desse grupo.

 
ISTOÉ

 Mas muitos jogadores da Seleção têm um vasto histórico de superação de dificuldades em seus currículos.

 
Katia Rubio

 A maioria deu um nó em carências educacionais e econômicas para chegar onde está. Não existe nada mais heroico neles do que isso. Foram criando repertório ao longo da vida para poder dar conta de tudo isso. Não se deve reforçar que a miséria e a pobreza favoreçam o surgimento de carências emocionais. Essa explicação fácil não cabe. Esses caras são bons demais! Quem pecou foram os que não deram a estrutura que eles necessitavam para encarar a guerra que estava adiante. Mandaram os jogadores para a guerra com facas de cozinha, e não com espadas.

 
ISTOÉ

 Depois do choro, o Thiago Silva deveria ter sido substituído como capitão da Seleção?

 
Katia Rubio

 Tirar a braçadeira dele seria um equívoco medonho. Porque você o desqualifica e reforça toda a insegurança e dificuldade de lidar com coisas que acontecem ali. O certo é sempre reforçar outras lideranças expressivas dentro do grupo, como Paulinho e David Luiz. Tirar o Thiago dessa função é torna-lo café com leite em uma brincadeira de pega-pega. Não faltou coragem ao Thiago, mas sobrou medo. Medo é da condição humana, um aliado que faz com que se mobilize diante do perigo. Mas o problema é o que você faz com esse medo. Ficar imobilizado e sucumbir ao ataque ou atuar demais e passar da medida? O Thiago sucumbiu ao medo.