São quase 16 horas e o técnico Luiz Felipe Scolari entra no Castelão esmurrando as paredes. Enquanto caminha no túnel de acesso aos vestiários, minutos depois de descer do ônibus, Felipão dá pequenos socos no concreto do estádio. A cena, transmitida no circuito fechado da Fifa – visível apenas em áreas restritas, como de mídia e do pessoal da organização –, é um prenúncio do estado de espírito da Seleção que logo mais entraria em campo para a partida contra a Colômbia. O Brasil parecia pronto para atirar pedras no adversário – a primeira viria logo aos sete minutos do primeiro tempo, no gol de Thiago Silva; a segunda pouco depois, num petardo de Hulk que o goleiro defendeu, a terceira numa quase cabeçada de David Luiz no atacante rival, mas foram muitas outras mais. A Seleção estava alucinada e realizava, àquela altura, sua melhor partida na Copa. Os nervos à flor da pele, tão criticados ao longo da semana, foram convertidos numa garra comovente e, agora, jogavam a favor do Brasil. E isso foi obra de um único homem: o técnico Luiz Felipe Scolari.

abre.jpg

Esse é o roteiro preferido de Felipão: primeiro vem uma saraivada de críticas, depois a desconfiança generalizada, a seguir a luta redentora e, no final, um cala a boca lançado em alto e bom som. E o roteiro ainda seria escrito com requintes de drama e sofrimento, graças ao gol da Colômbia perto do fim do jogo – nada mais apropriado ao estilo do velho Felipão. Depois de uma semana de intensas críticas, o Brasil enfim venceu e convenceu (e diante da torcida que mais empurrou o time, com uma festa linda na arquibancada), e alguns jogadores tiveram a merecida volta por cima. Durante a semana toda, Thiago Silva foi chamado de chorão e teve sua liderança questionada. Contra a Colômbia, fez o gol e não errou quase nada em campo (a não ser o cartão amarelo bobo, que o exclui da semifinal contra a Alemanha), formando com o impressionante David Luiz, provavelmente, a melhor dupla de zaga do planeta. Escalado no lugar de Daniel Alves, Maicon melhorou a marcação do time e Paulinho mostrou que ainda está no jogo. O crédito de tudo isso deve ser dado principalmente ao técnico da Seleção. A sexta-feira teria sido perfeita não fosse a contusão de Neymar, que saiu de campo chorando, após uma entrada criminosa de um colombiano. Noventa minutos depois do jogo, a comissão técnica do Brasil recebeu a notícia de que Neymar fraturou a terceira vértebra da lombar e está fora da Copa. Sua recuperação levará semanas, segundo o médico da Seleção, Rodrigo Lasmar. Sem o capitão e com o craque contundido, a Seleção vive mais um drama e Felipão terá de buscar em seu arsenal de tru­ques mais uma solução má­gica para colocar em campo um time motivado e em condições de bater a poderosa Alemanha na terça-feira 8, em Belo Horizonte.

FILIPAO-03-IE-2328.jpg
ZAGUEIROS ARTILHEIROS
Quando os atacantes ficaram apagados, David Luiz (acima, comemorando
o gol contra o Chile) e Thiago Silva (abaixo) estufaram as redes

FELIPAO-A-IE-2328.jpg

A mão pesada de Felipão pôde ser sentida durante toda a semana que antecedeu a partida contra a Colômbia. Uma atmosfera densa pairava sobre a Granja Comary, em Teresópolis, e o técnico resolveu agir. A primeira medida teve consequência imediata. Felipão convocou um grupo de seis jornalistas, aqueles que ele considera de sua confiança, para confabular sobre os rumos da Seleção na Copa. Não há nenhum problema nisso, mas a iniciativa revoltou profissionais de imprensa que não foram escalados para a conversa. O resultado se viu logo a seguir: os elogios ao comandante foram substituídos por uma avalanche de críticas. É duro de acreditar que o técnico, em sua terceira Copa e mais de cinco décadas dedicadas ao futebol, não tenha previsto a reação indignada. Será que não era isso mesmo que ele buscava?

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Felipão tem horror a zonas de conforto. Como um líder de estilo raivoso, precisa do confronto para seguir em frente. Algumas declarações revelam esse traço de personalidade. “Quanto mais pedirem um jogador, menos chances ele tem de ser convocado”, disse antes da Copa. Horas depois da vitória nos pênaltis contra o Chile, disparou: “Estamos sendo muito respeitosos com alguns estrangeiros que vêm jogar contra nós. Está na hora de voltar ao meu estilo agressivo. Não aguento mais.” Na quinta-feira 3, um dia antes da partida contra a Colômbia, outro petardo: “Tem jornalista com ciúme porque não foi chamado para a conversa? Que vá para o inferno.” Certas pessoas funcionam melhor quando são contestadas. Em 2002, Felipão não quis levar Romário para a Copa e comprou briga com o País inteiro. Mas o Brasil foi campeão do mundo. O teimoso de quem muito se duvidava passou ser o turrão simpático que sabe das coisas. Parece que, para ser competitivo, Felipão precisa do combustível do estresse. Precisa de sangue nos olhos.

FELIPAO-D-IE-2328.jpg
VIBRAÇÃO
O técnico comemora o segundo gol contra a Colômbia

Com a atual Seleção tudo foi diferente até o drama contra o Chile. Poucas vezes um time brasileiro foi para uma Copa do Mundo tão confiante. Até o esquadrão mágico do Mundial de 1970, com gênios do porte de Pelé, Tostão e companhia, sofria questionamentos antes de a bola começar a rolar. A conquista da Copa das Confederações, em junho do ano passado, teve um efeito, sabe-se agora, negativo: parecia que a Seleção estava pronta e que era realmente fantástica. Os problemas enfrentados pelo Brasil no percurso do Mundial escancararam os erros cometidos por Felipão, e que não podem ser esquecidos, apesar da vitória contra a Colômbia. Ele não planejou alterações táticas, não abriu mão de jogadores que estavam em má fase e, talvez mais grave ainda, achou mesmo que a Seleção era imbatível. “O Brasil vai ganhar a Copa”, disse em dezembro de 2013. Carlos Alberto Parreira, seu fiel escudeiro, foi na mesma linha de exaltação: “Estamos com a mão da taça”, afirmou Parreira. Um dos primeiros a criticar o excesso de otimismo foi Carlos Alberto Torres, o capitão do tri. “Copa do Mundo se ganha com muito trabalho e não falando que vamos ganhar porque é no Brasil”, disse Carlos Alberto. “Tem muito oba-oba.”

Os números mostram o conservadorismo tático de Felipão. Até as oitavas de final, os times que utilizaram menos jogadores foram Brasil, Rússia e Irã. Talvez Rússia e Irã careçam de gente talentosa para colocar em campo, mas este certamente não é o caso do Brasil. Contra a Colômbia, Felipão enfim engatou uma novidade – o lateral Maicon – mas manteve o apagado Fred para não sacrificar seu esquema. Felipão também tem sido econômico nos treinamentos. Depois de vencer o Chile nos pênaltis, os titulares do Brasil só puseram o pé na bola três dias depois. Nas outras seleções, pelo menos entre aquelas consideradas favoritas, mesmo quem jogou vai a campo treinar dois dias depois. Foi assim com Argentina e Alemanha. Detalhe interessante: o Brasil foi o time que mais teve folgas entre todas as seleções classificadas para as quartas de final.

A confiança generalizada – dos gestores da Seleção, da torcida e da imprensa – acabou por colocar uma pressão extra em quem realmente importa: os jogadores. A Seleção jamais teve os nervos tão à flor da pele quanto neste Mundial no Brasil. “Jogar em casa é complicado para qualquer time, mas me surpreendeu como os brasileiros estão tensos”, disse à ISTOÉ o italiano Alessandro Del Piero, atacante campeão do mundo em 2006 e que está no País como comentarista. “O time do Brasil é muito bom, mas precisa controlar as emoções.” O choro de todas as partes (do craque Neymar, do capitão Thiago Silva, do experiente Júlio César) e a qualquer hora (no hino, nos pênaltis, na preleção) fez Felipão colocar sua mão pesada de novo em ação. Às vésperas da partida contra a Colômbia, convocou a psicóloga Regina Brandão, com quem trabalha desde 1993. Regina conversou individualmente com jogadores e fez uma palestra motivacional para o grupo.

01.jpg

A questão é saber que motivo teria levado Felipão a tornar pública sua insatisfação com o estado psicológico do time. Ele não poderia ter chamado Regina sem que ninguém fora da Seleção soubesse? As conversas entre a profissional e os jogadores não poderiam ter sido virtuais, via internet? Na semana passada, rumores espalhados por jornalistas e comentaristas – alguns deles ex-jogadores – insinuavam que a tática de Felipão era tirar de seus ombros parte da responsabilidade de uma possível derrota. Se o Brasil fosse eliminado, a culpa não seria da falta de treinos, dos jogadores escolhidos para a Copa e das poucas variações táticas. Seria da enorme pressão a que foram submetidos os atletas e da fragilidade psicológica de alguns deles. A cabeça seria a desculpa ideal para as falhas com as bolas nos pés. “Nunca precisei de psicólogo para vencer”, diz o ex-lateral Cafu, capitão do time campeão do mundo em 2002. Cafu faz a ressalva de que o que é válido para uma pessoa não é necessariamente para outra. Ele defende Thiago Silva e abomina a ideia de tirar a braçadeira de capitão dele para dar a David Luiz, como queriam alguns críticos.

Em defesa de Felipão deve ser dito que ele sempre foi assim. Mais do que um gênio da estratégia, é, acima de tudo, um motivador – e sua capacidade de colocar pilha num time foi comprovada na vitória contra a Colômbia. Também deve ser dito que, afinal, é um campeão do mundo e que conseguiu a façanha de levar Portugal a uma semifinal de Copa. Como poucos técnicos, sabe conquistar a torcida e despertar o espírito patriótico dos jogadores. Para Felipão, uma boa frase que cala fundo na alma de um atleta vale mais do que uma prancheta com desenhos táticos. Em todo dia de jogo, ele escolhe uma sentença motivacional que será colocada por baixo da porta do quarto dos jogadores. São coisas do tipo “o pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que o vento mude” ou então “não há limites para o que você poderá fazer”. As duas frases foram escolhidas por Felipão para as partidas da primeira fase e é impossível saber se os jogadores as assimilaram ou não.

Atletas que tiveram um papel importante na carreira vitoriosa de Felipão se referem a ele sempre de forma positiva, mas reforçam aspectos que não estão necessariamente ligados ao futebol. “Confio no Felipão porque ele tem uma estrela enorme”, diz o ex-centroavante Jardel, campeão da Libertadores pelo Grêmio, em 1995, quando o time era treinado pelo atual técnico da Seleção. “Ele é muito carinhoso com as pessoas, mas cobra bastante também”, diz o volante Wesley, que estava no time do Palmeiras dirigido por Felipão em 2012. Neste ano, o Palmeiras venceu a Copa do Brasil, a última conquista do técnico antes de assumir a Seleção. Como Felipão, Parreira é aficionado por livros de autoajuda. Até escreveu um, “Formando Equipes Vencedoras”, lançado pouco antes do fiasco brasileiro na Copa de 2006, quando era o treinador. Parreira gosta de citar a música “Epitáfio”, dos Titãs, como exemplo de vida. Uma parte da letra diz o seguinte: “A cada um cabem alegrias e a tristeza que vier.” Na sexta-feira 4, os jogadores brasileiros – e o pertinaz Felipão – puderam enfim saborear uma dose merecida de alegria. 

Com reportagem de Wilson Aquino
Foto: JOÃO CASTELLANO/AG. ISTOÉ, Frederic Jean/ag. IstoÉ; Francois Xavier Marit/REUTERS, FABRIZIO BENSCH/poll/AFP Photo; João Castellano/Istoé


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias