Sempre que um poeta se suicida, há gente que corre a apontar, em alguns de seus versos, sinais de que neles está enunciado o desejo de morte. Trata-se de um olhar literário idealizado e equivocado: primeiro porque todo poeta canta a morte; depois porque tal simplificação empresta “glamour ao suicídio”, que tem tudo de tragédia e nada de charmoso. Finalmente, isso cria uma espécie de “depressão do verso”, misturando o que é psicopatologia com estilo poético e genialidade. A muito boa notícia é que acaba de desembarcar nas livrarias uma preciosa obra de autoria do biógrafo, roteirista e jornalista curitibano Toninho Vaz, que, felizmente, desmonta esse ingênuo e enevoado modo de ver a obra dos criadores que adoecem de depressão e seus gestos extremos. Trata-se de “A Biografia de Torquato Neto” (editora Nossa Cultura).

O piauiense Torquato Pereira de Araújo Neto foi poeta (um dos melhores que o Brasil já teve), ator e cronista, letrista e o verdadeiro idealizador do movimento cultural denominado “Tropicalismo”. Escreveu ele: “Um poeta desfolha a bandeira/e eu me sinto melhor colorido/pego um jato viajo arrebento/com roteiro do sexto sentido/voz do morro, pilão de concreto/tropicália, bananas ao vento”. Agora, em 2014, comemoram-se sete décadas de seu nascimento. Quando completou 28 anos de idade, em 1972, Torquato vedou porta e demais fendas do banheiro de seu apartamento no Rio de Janeiro. E abriu o gás. Na linhagem do talento de tantos que partiram tirando a própria vida (Ana Cristina Cesar, Sylvia Plath, Anne Sexton, Amy Winehouse), também Torquato teve a sua tragédia vestida de glamour por aqueles que acham “gênio literário o autor que se suicida” (nem Camilo Castelo Branco, que desistiu de viver temeroso de uma cegueira que avançava em decorrência da sífilis, escapou dessa tola roupagem).

O mérito maior da obra de Toninho Vaz é não embarcar na viagem do herói romântico. Com depoimentos e documentos chocantes, ele mostra o ápice de um Torquato que de Teresina desembarcou no Rio de Janeiro caindo de charme e alegria, brilhando intelectualmente, indo atrás de seus ídolos Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Um Torquato que deixou o eco de suas palavras, muito mais determinado a falar do que a registrar por escrito aquilo que produzia. “A decisão de fazer essa biografia (…) veio ao mundo no dia em que constatei que Torquato não tinha uma ‘obra’ literária ou poética”, escreve o biógrafo. O poeta Paulo Leminski, falecido em 1989, foi incisivo: “Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros”. Toninho Vaz expõe também a debacle psíquica de

seu retratado. A depressão hoje tem cura com medicamentos, mas nos anos 1970, quando Torquato se internou na Clínica do Engenho de Dentro, a medicina possuía parcos recursos. Aos que gostam de adoçar com romantismo a doença, eis um detalhe: Torquato não queria se matar, queria escapar do redemoinho, como mostra o autor por meio de um texto que o próprio poeta escreveu e levou à clínica – ficara esquecido no bolso da calça, usada no dia anterior e nem sequer trocada para a internação. E em seu diário, registrou: “Eu preciso conseguir os instrumentos que me preservarão e me desviarão do encontro marcado”. É necessário separar obra triste e melancolia doentia. Johann Wolfgang von Goethe banqueteava enquanto uma onda de suicídios ocorria devido ao seu personagem romântico Werther. E o nosso grande artista Tito Madi compôs a depressiva “a noite está tão fria, chove lá fora” em plena manhã, enquanto tomava chope e aguardava seu voo num sábado ensolarado no aeroporto do Galeão. Parabéns a Toninho Vaz pelo livro. E parabéns, Torquato, você queria viver.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ

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