Nas vésperas da Copa do Mundo mais estranha da história – sem Carnaval, sem bandeiras, vuvuzelas e sob expectativa sinistra –, massas turvas de água quente se deslocam do Oceano Pacífico rumo à América do Sul, na altura do Equador. A Nasa divulgou, na semana passada, uma foto meteorológica comparando a temperatura do Pacífico em maio de 2014 com a de maio de 1997. Os registros mostram que as águas estão mais quentes e o nível do mar, mais alto, o que indica, com 70% de probabilidade, que este ano haverá um fenômeno El Niño intenso, um dos mais fortes em décadas.

Depois dizem que Deus não é brasileiro. Assim como 1998 registrou ventos quentes, muito calor, chuva e inundações, de setembro a janeiro de 2015 poderá chover bastante no Sul e no Sudeste do Brasil. Assim, o governador Geraldo Alckmin será salvo de um desastroso racionamento de água em São Paulo nas vésperas das eleições e, por tabela, a presidenta Dilma Rousseff, de um vexaminoso colapso de energia no País.

Enquanto o Pacífico esquenta, motoristas de ônibus, policiais militares, movimentos sem-teto de várias tendências e partidos, professores da USP (insatisfeitos com os 105% do orçamento da universidade gasto em salários), metroviários, índios, pilotos e controladores de voo (quietinhos até o momento) tramam greves, invasões, ocupações e protestos para aproveitar a visibilidade da hora, com o mesmo zelo com que os hoteleiros do Rio de Janeiro esfregam as mãos de satisfação e digitam as calculadoras.

A inédita indisposição brasileira com a Copa, afinal radicalmente diferente do oba-oba “inconsequente” dos campeonatos sob a ditadura militar, não sensibiliza os vizinhos do Sul. Sendo a Argentina o quarto maior comprador de entradas para os jogos (e forte candidata às oitavas de final), milhares de portenhos preparam-se para viajar de automóvel para o Brasil do jeito que der, quatro em cada veículo, revezando-se na direção para economizar com hotéis – com ou sem entradas –, para celebrar a Copa de Messi.

Os mais de 500 mil turistas estrangeiros que já compraram ingressos e viajarão entre as capitais-sedes dos jogos poderão experimentar a logística nacional e conhecer a cordialidade e a esperteza brasileiras – antológicas –, sobretudo estádios como a Arena Amazônia, uma beleza de R$ 605 milhões feita para 42 mil pessoas (apesar de a última final do campeonato amazonense ter atraído 3.100 espectadores). Nos
últimos dias, o presidente Joseph Blatter revelou que a Confederação Brasileira de Futebol insistiu em construir 17 estádios. Foi graças à Fifa que o governo brasileiro se conformou com 12.

Desentranhar a leviandade do jeitinho brasileiro exigirá mais do que maldições ao capitalismo, ao PT, ao PSDB, ao padrão-Fifa, à Casa Branca, ao Kremlin, ao Vaticano, à ONU e ao mau-caratismo nacional.

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Nos próximos dias, até black blocs terão emoções imprevistas, turvas como as ondas do Pacífico. Se o Brasil ultrapassar as seleções de Croácia, México e Camarões, o acaso poderá inspirar Daniel Alves, Hulk, Oscar, Neymar e Fred a jogar o melhor possível, com decência, esforço e talento. Não é preciso ganhar a Copa. Basta não fazer feio. Dá para imaginar uma final com a Argentina no Maracanã?

Ricardo Arnt é diretor da revista Planeta


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