14/05/2008 - 10:00
Ex-prefeito de Bogotá, o filósofo e matemático Antanas Mockus, 56 anos, ajuda hoje as Prefeituras de São Paulo, Belo Horizonte e Cidade do México a implantarem seu conceito de “cultura cidadã”. As suas ações como prefeito da capital colombiana são vistas como a principal causa da redução da taxa de 80 mortes por 100 mil habitantes para 23 por 100 mil, em dez anos. Apesar da permanência do estado de guerra civil no país, Bogotá se tornou a cidade mais segura da América do Sul. Em entrevista à ISTOÉ, o exprefeito, que integra o Conselho Latino-Americano sobre Drogas e Democracia, alerta para o “custo altíssimo” que as metrópoles podem pagar pela ilusão de que as milícias são uma boa alternativa ao narcotráfico.
"Precisamos promover uma rejeição social às drogas, como fazemos com o cigarro e o uso excessivo de carros”
“Quando Uribe fala das Farc, o ódio é notável: seu pai foi morto pela guerrilha. Ele é mais neutro em relação aos paramilitares"
A violência está mais relacionada com o tráfico do que com o consumo. E o tráfico tem mais a ver com aeroportos e fronteiras, temas nacionais. O fim dos anos 1980 registrou alto índice de crimes motivados pela idéia de fazer justiça com as próprias mãos. Eram traficantes matandose entre si, uma espécie de justiça interna. Houve também debilitação da Justiça, sobretudo nas regiões menos populosas, com paramilitarismo, guerrilha e narcotráfico. A mistura de corrupção e intimidação enfraqueceu a Justiça.
Recentemente, um grande processo contra paramilitares deu mais credibilidade à Justiça, mas os crimes comuns continuam sem solução. Setenta por cento da demanda da Justiça está relacionada à violência familiar. Estamos respondendo aos crimes mais graves, não aos mais freqüentes. De qualquer forma, houve fortalecimento de marcos regulatórios, mais consciência sobre o valor da vida e melhoras na solução de homicídios, com a criação de grupos especiais no Ministério Público.
Não se pode pensar nisso antes de um recuo no consumo. Só quando houver o resultado da combinação de consciência pessoal e pressão social, familiar, escolar e dos meios de comunicação é que se poderá pensar em desmontar o último recurso, a sanção legal. Acho que se pode transformar o sistema de sanções, desistindo das penas longas de prisão.
Acredito mais na detenção por períodos curtos, 24 horas, por exemplo. Não creio que um homicida deixe de matar se a pena for de 25 anos e não de 20. Isso pode ser um consolo para a sociedade, que tenta satisfazer uma culpa ou iludir-se de que está fazendo algo. Sanção como vingança é ineficaz, não resolve. Jeremy Bentham (filósofo inglês, 1748-1832) dizia que há comportamentos indesejáveis que a sociedade não pode penalizar, pois as regras serão burladas. O adultério é um exemplo. É melhor, como sugere Bentham, deixar esses assuntos para os sacerdotes.
Precisamos desenvolver o controle social, promover uma rejeição social às drogas, como fazemos com o cigarro e o uso excessivo do carro. A todo momento a sociedade obriga o fumante a pensar que está se intoxicando, quase o estigmatiza. A rejeição às drogas tem sido muito caricatural, sem promover processos reais de pressão de indivíduos reais sobre indivíduos reais. Em Bogotá, o desperdício de água parecia um problema insolúvel, mas combinamos repressão com educação e 3% da população, 63 mil famílias, resolveram pagar impostos voluntários pela água. Se você dá publicidade ao exemplo, ele vira um instrumento forte.
É preciso também atacar as justificativas que as pessoas usam para as ilegalidades que cometem. No caso da droga, é muito visível. Muitos dizem que vendem drogas para ajudar a família. Atacamos fortemente esse sistema de justificações, com comerciais na tevê dizendo “vá enganar outro”. Tenho sido consultado por metrópoles interessadas em desenvolver a cultura cidadã, como São Paulo, Belo Horizonte e Cidade do México. Começamos pesquisando as justificações para comportamentos ilegais.
O denominador comum é a equivalência do direito à vida ao direito à propriedade: matar para roubar ou para não ser roubado. Também me chamam a atenção as experiências locais de políticas de segurança. Diadema foi bem sucedida ao adotar parte das medidas de Bogotá, como o fechamento dos bares depois da 1h nos bairros com mais crimes e acidentes de trânsito.
Foi a implantação de uma cultura cidadã, a exigência de mais respeito às leis por interiorização das regras. Com a mudança comportamental, a remontagem do espaço público ajudou muito. Quase não houve aumento do efetivo policial. Acabamos com 2,3 mil agentes de trânsito municipais e passamos suas tarefas para a Polícia Nacional. Eu defendi a qualificação dos policiais, em vez de elevar seu número.
Investindo mais em artes e espetáculos, nos exemplos de tolerância, nos festivais de teatro. Um dos quatro itens do programa de cultura cidadã é aumentar a capacidade de interpretação e expressão, via arte, recreação e esporte. Os outros três são: aumentar o respeito voluntário às normas, ampliar a quantidade de pessoas capazes de pressionar quem não cumpre as normas e multiplicar a solução pacífica de conflitos. Imagine um carro que entra na contramão e quase bate em outro. Eles conseguem evitar a batida e param lado a lado. O que está na mão certa abaixa o vidro e diz: “Assim não vamos ter a cidade que queremos.” Espera-se que o outro reaja violentamente, mas ele abaixa a cabeça e concorda. Em Bogotá, liquidamos a polícia de trânsito e os policiais nacionais foram qualificados como formadores de cidadania.
Por causa da violência. Governantes locais tendem a usar a polícia local com fins políticos. A nacionalização permitiu a profissionalização dos policiais e a reforma constitucional de 1991 pôs a Polícia Nacional sob o controle dos prefeitos.
A ocupação ilegal tem sido combatida com a oferta de terra para urbanização. Mas o sistema de crédito imobiliário dificulta isso, porque os bancos querem emprestar só para quem tem emprego. Nós colocamos como indisponíveis os bens de urbanizadores piratas. Se uma área de risco é ocupada, o Estado dá outras casas para tirar as famílias, mas, se a mesma área é invadida de novo, vira caso de polícia, sem indenização, para não gerar círculo vicioso. Monitoramos cada área e a polícia precisa prestar contas dos avanços na proteção da vida.
Certa vez, desocupamos uma área sob risco de avalanche. Foram cenas difíceis, os meios de comunicação jogaram duro mostrando famílias despejadas e chorando. Um ano depois, houve a avalanche e até os removidos agradeceram a firmeza da polícia. A política de segurança esteve centrada na idéia de que a vida é o bem mais importante. Os latinos- americanos tendem a matar para roubar mais do que outros povos. E também a matar para não se deixar roubar. É um absurdo a forma como o direito à vida e o direito à propriedade estão nivelados. Na Europa, podem te roubar, mas não há tanto risco de que te matem.
Claro que não. Nossa política foi de tolerância zero com paramilitares, que buscaram mais as bases da guerrilha do que de delinqüentes urbanos. Quando assumi, em 1995, fiquei alarmado com o índice de 3.452 mortes no ano anterior e me disseram para ficar tranqüilo porque um terço era de criminosos mortos por criminosos. Eu disse que a polícia deveria proteger a vida de todos, incluindo criminosos. A vida é sagrada. Promovemos uma política incansável pela redução dos homicídios, incluindo associações comerciais e empresas de segurança. Não admitimos “limpeza social” com homicídios.
O que o paramilitarismo fez foi ampliar os crimes e dar aos criminosos organizações maiores. Começavam como empresas de segurança e logo enriqueciam, compravam terras, buscavam poder político. Se há algo que o mundo pode aprender com a experiência colombiana é que esse atalho, esse jeitinho, tem um custo elevadíssimo. Criam Estados paralelos, com disputas internas sem regras. Ficam legais por algum tempo como segurança privada, mas sempre enveredam por outros caminhos.
Alguns querem atribuir o êxito aos paramilitares, mas o crime caiu nos anos do Plano Colômbia, com o fortalecimento da polícia e do Exército. Os cínicos dizem que os paramilitares fizeram o serviço sujo e a força pública legal ficou com os méritos. O fato é que o paramilitarismo foi logo contaminado pelo tráfico e se vestiu de movimento político no combate à guerrilha. Eles se tornaram delinqüentes que prestam serviços de vigilância e praticam extorsões, além de tráfico. Como disse Carlos Castaño, um dos principais líderes paramilitares: “Só conheço algo mais sujo do que a guerra. É a forma de financiar a guerra”.
Não, pois são igualmente violentos. As milícias na Colômbia não surgiram como solução local diante da pressão do tráfico, mas contra a guerrilha. Desde seu nascimento, estão muito próximas do narcotráfico. Em um grupo de discussão sobre guerrilha, um participante resumiu o pensamento majoritário: “Acabe com os guerrilheiros, custe o que custar”.
A sociedade é consciente de que os métodos dos paramilitares não são bons, mas uma parte os vê como mal necessário. Essa teoria tem feito um mal enorme à Colômbia porque não temos mais um problema, e sim dois: as Farc e os grupos paramilitares que tiram vidas ao seu arbítrio cobram dívidas, impõem regras, exigem transferência de propriedades. É difícil para uma pessoa dessas regressar à vida civil. O treinamento do militar e o da polícia prepara os agentes para a cidadania. Os paramilitares são preparados para a arbitrariedade. Têm algo de disciplina, mas o nível de abuso e delito é altíssimo.
Criei cursos de um mês para 3,6 mil policiais nacionais, que passaram a ser chamados de “cidadãos formadores de cidadãos”. Depois, com apoio do BID, incluímos todas as forças policiais. Bogotá se beneficiou muito com a reforma da Polícia Nacional, iniciada em 1991 como resultado de um escândalo que foi a violação de uma menina de três anos em um quartel. A polícia chegou ao fundo do poço e se conscientizou da necessidade da transformação cultural.
Não. Há uma confiança: Uribe, pessoalmente, não está envolvido. Habilmente, ele mostra a cara, responde às acusações. Creio que a população queira governantes que mostrem resultados, sem observar muito os procedimentos.
Quando Uribe fala das Farc, seu ódio é notável. Seu pai foi assassinado pela guerrilha. Quando fala dos paramilitares, é mais neutro, emotivamente menos crítico.