No grande aquecimento para a Copa do Mundo, o mercado editorial aposta no tema em várias frentes. As mais certeiras seguem a lógica dos estádios: bons times, grandes partidas; bons autores, grandes livros. Lançado este ano, “O Drible”, de Sérgio Rodrigues, ganhou mais de uma impressão, teve pelo menos seis lançamentos nacionais e está sendo traduzido para o espanhol e o francês. O autor diz que “expandiu para além do gueto dos cinco mil leitores que apreciam literatura contemporânea” muito por conta do tema. E do momento. Mas não só.

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QUASE
Jogada em que Pelé dribla o goleiro Mazurkiewicz, enganando os
olhos de todos na Copa de 1970, é ponto de partida de "O Drible"

A narrativa veloz e atordoante como a jogada que lhe dá título – a finta com que Pelé confundiu o goleiro Mazurkiewicz (e o resto do mundo) no mundial de 1970 – toma o leitor com o magnetismo da crônica futebolística, gênero com cadeira cativa há bastante tempo no coração do brasileiro. E não apenas aqui . Assim que chegou ao solo francês, a história do relacionamento truncado entre pai e filho, que se mistura com os grandes acontecimentos do futebol e do Brasil da última metade do século passado, atiçou olheiros do “Le Monde”. Interessado em incrementar o noticiário sobre o evento, o jornal encomendou um folhetim com esporte como tema (ou personagem), que vai publicar em 24 capítulos dentro do especial sobre o mundial a ser encartado no diário durante a realização da Copa do Mundo no Brasil.

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GOL DE VIRADA
Sérgio Rodrigues recupera a tradição da crônica futebolística do Rio de Janeiro
em romance cheio de reviravoltas surpreendentes

Apesar da hora oportuna para o lançamento, o romance de Sérgio Rodrigues nasceu há 15 anos, com o conto “Peralvo”, história do jogador paranormal que seria melhor que o atleta do século por ver os acontecimentos instantes antes de eles ocorrerem. “Mas achei que ele renderia mais e guardei”, contou o escritor no último Festival da Mantiqueira de literatura, onde autografou a obra e participou do debate Literatura de Chuteiras. Rendeu. “Peralvo” virou um capítulo de “O Drible”, narrado na voz de Mário Filho, o pai – conhecido como o Charles Dickens da Lapa carioca. O artifício do escritor é certeiro: o conto faz todo sentido na história que retoma o papel ensurdecedor do futebol durante os anos de chumbo. É talvez o capítulo mais impressionante do livro e chave para a narrativa do romance, sendo quase todo o restante narrado por Murilo Neto, o filho.

Do ponto de vista do jovem que cresce à sombra da escrita talentosa e das conquistas amorosas do pai, Sérgio Rodrigues toma como personagens alguns dos maiores autores de textos sobre futebol do País. Nelson Rodrigues, por exemplo, oferece um Chicabon na arquibancada do Maracanã, onde o menino acompanha o trabalho paterno. Teria ouvido “do homem de olheiras e suspensórios” o conselho que mais tarde descobriria não ser só para ele. “Envelheça”, lembraria anos depois do dia da partida provavelmente entre Flamengo e Fluminense. Mário Filho, irmão mais velho de Nelson, é no livro um colega de redação do pai do protagonista, um ídolo e referência na criação da crônica esportiva, algo que de fato o jornalista foi e é até hoje.

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FLA-FLU
Mário Filho, que torcia para o Flamengo, e seu irmão mais novo, Nelson Rodrigues,
devoto do Fluminense, são autores e personagens do melhor que as
livrarias estampam em suas vitrines às vésperas do mundial

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Criador de termos como “Fla-Flu”, seus textos criaram escola e tinham grande força política. Foram, por exemplo, decisivos para a construção do Maracanã – estádio que hoje leva seu nome. Mário Filho é uma das matrizes do texto colorido e ritmado que lança o leitor para os anos de formação da identidade do esporte e do estabelecimento de mitos que alimentam ainda hoje o nosso futebol. “Nenhum de nós, jornalistas, somos capazes de engraxar os seus sapatos”, escreve José Trajano na quarta capa do livro “As Coisas Incríveis do Futebol”, uma reunião de crônicas de Mário Filho, publicadas em livro pela editora Ex Machina.

Autor de “O Negro no Futebol Brasileiro” – o “Casa Grande e Senzala” do futebol –, Mário Filho traduz a febre crônica que toma conta do coração do torcedor em momentos de decisão, como os que se aproximam. Em tempos de aplicativo, é curioso ler as reflexões do cronista sobre os radinhos de pilha como mídia, publicadas no “Globo Sportivo” em 1950. “Antigamente não havia torcedor de rádio. Havia, porém, o torcedor dos recortes de jornais. Dos telegramas. O torcedor que tinha de contentar-se com o laconismo dos sinais de Morse. Ary Barroso foi assim. Ela ia cedo, toda segunda-feira, à estaçãozinha de Ubá, para saber se o Fluminense vencera. (…) José Lins do Rego disse-me que conhecia um torcedor que dera um tiro no rádio, sim, que sacara o revólver e dera um tiro no rádio quando a Itália marcou o segundo gol contra o Brasil.”

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Foto: REPRODUÇÃO/AE