O Brasil tem cerca de meio milhão de presidiários e sabe-se, com certeza, que celulares (dos mais simples aos tecnologicamente mais avançados) frequentam as celas da maioria deles. Sabe-se também, e com igual certeza, que celulares nas cadeias são poderosos elos que mantêm aqui fora a rede do crime organizado. Finalmente, sabe-se, e de forma indubitável, que as autoridades dos quatro cantos do País têm sido mal-sucedidas no combate a tal fenômeno. A legislação brasileira específica (Lei de Execução Penal) sobre disciplina nas instituições prisionais determina que “comete falta grave” o preso que for pego com telefone – frise-se, quem for pego com ele, ou seja, tem de estar nas mãos da pessoa. Enquanto a armação de delitos, a partir dos presídios, cruzam o céu de torre em torre de retransmissão, autoridades judiciárias de Brasília parecem ter eleito, no entanto, um presidiário da penitenciária da Papuda como o ideal tipo weberiano do “vilão do celular”: o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, condenado no processo do mensalão a sete anos e onze meses de prisão em regime semiaberto de execução de pena.

O Estado de Direito, detentor legal e legítimo do monopólio de punir, tem o dever constitucional de ponderar e regrar a si próprio nessa função. Dela negligencia, porém, no caso de Dirceu: não existe um único indício sequer de que ele tenha falado ao celular, estando preso, com um secretário do governo da Bahia, e isso é reconhecido pelas próprias autoridades que o investigam. Nenhum telefone foi localizado no sistema solar que leve à suposição de que poderia ter sido utilizado por Dirceu. Na verdade, o toque do telefone é outro: a novela da suposta ligação é para retardar, mais ainda, a outorga ao ex-ministro de seu direito de sair da prisão pela manhã para trabalhar e retornar à noite. Pela lei, José Dirceu já deveria estar trabalhando (está encarcerado desde novembro), até porque tem quem o empregue; se eventualmente ficasse comprovada a falta grave, aí legalmente ele “regrederia” (voltaria ao regime fechado). O que não pode acontecer é o que está ocorrendo: pune-se antes do esclarecimento do fato. Olhando-se pela sociologia e pela psicologia social, é como se houvesse um “psiquismo projetivo”: punindo Dirceu punimos todos aqueles inalcançáveis que falam ao celular nas prisões.  

Para descobrir com quem o ex-ministro conversou, a promotora que trata do assunto pediu a quebra do sigilo de celulares baseando-se em coordenadas geográficas – aliás, único recurso de que dispunha.

As torres de transmissão alvo atingem, nada mais, nada menos, que o Palácio do Planalto, a Praça dos Três Poderes e a própria região do Ministério Público. 

Ou seja: qualquer cidadão (autoridade ou não) que trabalhe nesses locais ou que neles estivesse tão somente passando e conversando ao telefone teria seu sigilo quebrado. Coube ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, opinar imediatamente contrário ao pedido da promotora “por excesso sem justificativa plausível”, e é ela própria quem admite que recebeu “denúncia informal” de que Dirceu teria cometido infração disciplinar. Por conta do excesso a que se refere Janot, a promotora agora responde a processo disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público. Toda a celeuma do celular tem motivação, nome e endereço certos: deixar José Dirceu trancado na Papuda.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ