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Da mesma linhagem de um gigante literário como Ernest Hemingway, o escritor colombiano Gabriel García Márquez não ombreava o colega apenas na qualidade da escrita. No plano mais corriqueiro, costumava ter o autor americano como modelo para uma de suas muitas idiossincrasias, a de não se decidir pelo desfecho de uma história. Não cansava de dizer aos amigos – e falava isso entre o orgulho de dividir uma mania ou para se desculpar do propalado perfeccionismo – que o autor de “Adeus às Armas” ficara indeciso entre os 21 finais que esboçara para a narrativa inspirada em suas experiências no front italiano durante a Primeira Guerra Mundial. Foi justamente a multiplicidade de caminhos abertos aos personagens da novela “Em Agosto nos Vemos” que adiou a publicação dessa suposta última obra, iniciada em 1999. Gabo não gostava do epílogo e morreu sem dar nele o ponto final. Na semana passada, a editora Penguin Ramdon House, dona dos direitos da obra do autor, declarou que o romance inacabado pode vir a ser lançado e que isso só depende da anuência dos herdeiros do escritor colombiano. No caso, a sua mulher, Mercedes Barcha, e os filhos cineastas Rodrigo e Gonzalo. O mundo literário ficou eufórico.

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NAS MÃOS DA MULHER
Gabo com a sua mulher, Marcedes Barcha, na cidade natal de
Aracataca (2007): só ela pode dizer sim à publicação do novo livro

A declaração oficial da editora foi divulgada justamente quando o jornal espanhol “La Vanguardia” publicava o primeiro capítulo do livro (com créditos atribuídos aos herdeiros de Gabo), cuja história passada no exótico ambiente de uma ilha caribenha já dava pistas de um enredo envolvente. Segundo o editor espanhol de García Márquez, Claudio López, o manuscrito esteve em suas mãos e só não foi para a gráfica porque o autor não teve tempo de finalizá-lo: “O desfecho é demasiado aberto. Acredito que mais cedo ou mais tarde verá a luz do dia”, diz. A opinião é compartilhada por uma série de escritores, a favor da edição do romance mesmo sem o final definido. Ou, quem sabe, com os seis finais, o que não deixa de ser uma experiência curiosa, colocando a nu o processo criativo do autor. Se o último capítulo não satisfazia ao seu criador, o início cativa já no primeiro parágrafo. “Voltou à ilha na sexta-feira 16 de agosto, no barco das duas da tarde. Levava uma camisa xadrez escocês, jeans, sapatos simples de salto baixo e sem meias, uma sombrinha de cetim e, como única bagagem, uma mala de praia. Na fila de táxi da doca, foi direto a um modelo antigo, carcomido pelo sal” – assim começa Gabo, com objetividade jornalística, outra ponta de seu estilo consagrado. A fabulação, claro, logo se faz presente na viagem de Ana Magdalena Bach (mesmo nome da mulher do compositor alemão Johann Sebastian Bach), uma mulher casada de 52 anos, que há 28 visita a ensolarada ilha para depositar gladíolos na tumba de sua mãe.

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CENÁRIO COMUM
Javier Bardem em "O Amor nos Tempos do Cólera", filmado em Cartagena:
ambiência exótica repetida na história de "Em Agosto nos Vemos"

Ana não é uma mulher comum: usa relógio masculino, camisa com as iniciais bordadas e aprecia gim-tônica. Numa noite no bar do hotel (o mesmo de sempre, o mesmo quarto de sempre), ela nota a presença de um homem na mesa à frente. A música, executada por um pianista de dedos preguiçosos e entoada por uma mulata de voz boa, era “Claire de Lune”, de Claude Debussy – mas em ritmo de bolero. “Vestia linho branco, como nos tempos de seu pai, com o cabelo metálico e o bigode de mosqueteiro terminado em pontas. Tinha na mesa uma garrafa de aguardente e um copo pela metade, e parecia estar sozinho no mundo”, continua o narrador, a essa altura assumindo o olhar da personagem. Como as mulheres fortes de Gabo, Ana toma a atitude, vai à mesa, vasculha a identidade do homem, convida-o para seu quarto. Acorda sem o amante do lado e com a consciência de ter traído pela primeira vez o marido, com quem se casara virgem. “Até então não se tinha dado conta de que não sabia nada dele, nem sequer o nome, e a única coisa que restava de sua noite era um tênue odor de lavanda no ar, purificado pela tempestade.”

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Na cabeceira, dentro do volume de “Drácula” que lhe fazia companhia na viagem, uma nota de US$ 20.
As notícias sobre a existência de “Em Agosto nos Vemos”, antes concebido como um livro de contos, começaram a ser confirmadas em 2008, pela língua solta de alguns amigos. Um deles foi o jornalista colombiano Darío Arizmendi, dono da Radio Caracol, que já falava dos muitos rascunhos. Também amigo de Gabo e tradutor de “Cem Anos de Solidão”, o escritor brasileiro Eric Nepomuceno aconselha a ficar reticente em relação ao manuscrito. “Ele mudava seus livros frequentemente, dizia uma coisa e, quando o livro saía, era outra coisa”, afirma. Segundo Nepomuceno, o escritor tinha outra mania: gostava de convidar pessoas estranhas para conhecer os rascunhos, deixava-as enfurnadas em sua casa por três dias e não permitia que fizessem nenhum comentário do que leram. “Esses encontros tinham um código de máfia”, diz ele. Havia também os eleitos intelectuais, caso do conterrâneo Álvaro Mutis e do crítico uruguaio Ángel Rama, ambos mortos. Não faltam os que veem semelhanças entre o enredo de amor, morte e redenção pelo sexo de“Em Agosto nos Vemos” com o das três últimas obras do escritor, apontando para uma tetralogia, hipótese refutada por Nepomuceno. “Ele nunca escreveu séries”, diz. De qualquer forma, serve para o inédito a frase do último livro publicado: “O coração tem mais quartos que uma pensão de putas.”

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Fotos: Divulgação


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