Um demonstrou capacidade invejável de se conectar ao povo e reunir multidões onde quer que estivesse. O outro ascendeu ao trono da Igreja em um contexto em que o catolicismo necessitava de grandes mudanças e passou a colocar ordem na casa, reforçando a opção pelos pobres. Eles foram os mais importantes nomes da Igreja Católica no século passado. Os pontificados de João Paulo II (1920-2005) e João XXIII (1881-1963), que, no domingo 27, serão canonizados na Praça São Pedro, no Vaticano, sustentam muitos outros feitos. Na cerimônia em Roma, porém, é em Francisco que se devem depositar os olhares. O atual papa, apesar de ocupar o cargo há apenas um ano, consegue ser uma síntese desses dois grandes líderes, que se tornarão santos. O argentino Jorge Mario Bergoglio reuniu em seu curto pontificado o que de melhor consta nos currículos do pontífice polonês Karol Wojtyla, o chamado “papa da esperança”, e do italiano Angelo Roncalli, o “papa bom”.

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REVERÊNCIA
O argentino Bergoglio se curva diante dos antecessores, o italiano
Roncalli (à esq.) e o polonês Wojtyla (à dir.), que serão alçados
por ele como os mais novos santos da Igreja Católica

Francisco, como Wojtyla, é oriundo de um país periférico, no caso a Argentina. Os dois ascenderam em Roma com experiências históricas marcantes em suas trajetórias. João Paulo II conviveu com as mazelas do regime comunista e Bergoglio, com as de uma ditadura militar. Muito por conta desses caminhos, ambos são próximos em suas mensagens centradas em fazer a Igreja trilhar pelo caminho dos direitos humanos e da igualdade social. O papa polaco, atlético ao assumir o trono de Pedro aos 58 anos, assim o fez como um globetrotter que percorreu, em 27 anos de pontificado, 1,7 milhão de quilômetros em 102 viagens pelo mundo. Francisco, apesar de não ter rodagem semelhante e de se tornar líder da Cúria Romana quase 20 anos mais velho, aproxima-se de Wojtyla por ser um homem que também fala às multidões mais com gestos do que com palavras. Se o polonês que fora ator de teatro imitava Charlie Chaplin em encontros com jovens e beijava o solo da nação onde desembarcava, o portenho estreita a relação com as massas ao se recusar a usar o papamóvel, como fez em recente visita ao Brasil, e telefonar para fiéis. Esse estilo simples, sem muita pompa, deve marcar a celebração das canonizações de João Paulo II e João XXIII. Esperam-se cinco milhões de pessoas em Roma, embaladas também pelos ritos da Semana Santa, além da ilustre presença do papa emérito Bento XVI, o cardeal mais próximo de Wojtyla durante o seu pontificado. Sociólogo da religião, Francisco Borba Neto recorda que tanto Wojtyla quanto Bergoglio foram eleitos, no primeiro ano de seus pontificados, o “homem do ano” pela revista norte-americana “Time”. “João Paulo II foi o queridinho das multidões – como é Francisco – até a queda do Muro de Berlim, em 1989, porque era importante para os meios de comunicação transformá-lo em herói da luta contra o comunismo”, explica ele, coordenador do núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. “Depois, a sua porção conservadora e tradicionalista passou a ser mais explorada.”

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FERVOR
A costa-riquenha Floribeth viu desaparecer seu aneurisma ao fazer
uma prece a João Paulo II no mesmo dia em que
ele era beatificado, em Roma, em 2011

O Vaticano está chamando o dia 27 de abril de “domingo da misericórdia”. A missa presidida pelo papa Francisco começará às 10 horas (horário de Roma), com aproximadamente mil concelebrantes, entre cardeais e bispos. Cerca de 700 sacerdotes distribuirão a comunhão na Praça São Pedro, além de centenas de diáconos na Via da Conciliação. Depois da missa, será possível venerar as tumbas dos novos santos. Os templos ficarão abertos para que os fiéis possam rezar e confessar. Espera-se que a grande maioria dos fiéis seja composta por devotos do santo polonês.

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Morto em 2005 e beatificado seis anos depois, João Paulo II, atualmente, está mais vivo na memória dos católicos do que qualquer outro santo da Igreja. Sua força mística está diretamente associada, segundo Francisco Borba Neto, ao fato de ele ter representado a aproximação de Deus com os fiéis. “Com a força de sua presença, suas viagens e seus gestos, ele trazia para o povo simples a percepção de que o ‘representante de Deus’ ou ‘um homem santo’ vinha até eles”, afirma. Histórico, portanto, foi o dia do enterro desse pontífice, em 2005. Uma multidão fez fila no Vaticano para dar adeus e gritava em italiano “santo súbito”. Para atender à pressa dos devotos, a Santa Sé amealhou, no tempo recorde de nove anos, os dois milagres necessários para carimbar a sua santidade. Freira de 50 anos, Marie Simon-Pierre passou a sofrer, no mesmo ano do falecimento de João Paulo II, com os sintomas da doença de Parkinson, que a impedia de caminhar. Depois de negar seu afastamento da congregação da qual fazia parte, a sua superiora pediu que ela escrevesse em um pedaço de papel as palavras “João Paulo II”. Após orações dela e de outras irmãs feitas ao pontífice, certa manhã Marie se levantou convencida de estar curada. Os médicos da francesa nunca conseguiram explicar a cura dela e, com o milagre em vista, a Congregação para a Causa dos Santos da Igreja deu sinal verde para Bento XVI torná-lo beato, consumado em 2011.

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Naquele mesmo ano, o segundo milagre por intercessão do papa polaco veio à tona. A dona de casa costa-riquenha Floribeth Mora Diaz foi diagnosticada com aneurisma e os médicos deram a ela um mês de vida. Com dificuldades para falar e usar a mão esquerda, ela rogou a João Paulo II. Em uma noite, depois de assistir pela TV à cerimônia de beatificação do Santo Padre, em 2011, escutou uma voz pedindo para que ela “se erguesse e não tivesse medo”. O processo de cura aconteceu paulatinamente até que, em uma consulta, Floribeth disse se sentir curada, o que foi atestado por um exame posterior. Depois de relatar seu caso na página oficial de Wojtyla, a costa-riquenha recebeu uma ligação do Vaticano, que confirmou o milagre com novos exames na Itália.

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DEVOÇÃO
Freira francesa, Marie Simon-Pierre levantou-se, certa
manhã, curada da doença de Parkinson depois de orar pelo
pontífice polonês e escrever o nome dele em um papel

Com João Paulo II e João XXIII, a Igreja terá canonizado sete papas nos últimos mil anos. Pouco, se compararmos com os 54 pontífices que se tornaram santos nos primeiros dez séculos do catolicismo (leia na pág. 53). Francisco, por sua vez, chegará a dez santificações, sendo seis delas sem a necessidade da comprovação de um segundo milagre, por meio de uma espécie de ato administrativo do Santo Padre. Assim será o caso de João XXIII. O “papa bom” foi beatificado em 2000, quando lhe foi atribuída a cura da freira italiana Caterina Capitani, da Congregação das Filhas da Caridade, que estava desenganada pelos médicos por causa de um tumor no estômago. Segundo relato da própria religiosa, em 1966, ela estava de cama, com febre altíssima, respirando ofegante, e teve a nítida impressão de que não aguentaria até a noite. Pediu, então, que uma irmã deixasse a sua porta entreaberta, porque estava à espera do Senhor. Após alguns minutos, ela sentiu uma voz que a chamava do lado esquerdo: “Irmã Caterina”. Assustada, virou-se e viu o papa João, que disse estar orando muito por ela. A freira se curou e viveu até 2010. “João Paulo II disse, certa vez, que a Igreja precisava de santos mais do que de reformas”, diz dom Angélico Sândalo Bernardino, presidente da Comissão Especial para os Bispos Eméritos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. “Hoje, precisamos de santos reformadores, santos em vida. Ninguém se torna santo depois da morte.” O italiano Roncalli foi um desses casos, um santo em vida, segundo vaticanistas. Ele iniciou uma revolução na Igreja ao projetá-la unida, ecumênica, vivendo para os que estão fora dela e não para si ao convocar o Concílio Vaticano II (1962-1965), reunião de bispos do mundo inteiro que provocou profundas mudanças na Igreja Católica.

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O papa camponês e o pontífice argentino guardam muito mais semelhanças que o sorriso largo, os gestos espontâneos, o olhar afetuoso e o apreço pela simplicidade. Antes de o cardeal brasileiro dom Claudio Hummes dizer a Jorge Mario Bergoglio não se esquecer dos pobres, o que o fez escolher o nome Francisco, ele pensou em se chamar João XXIV. Como o cardeal Roncalli, que foi papa por cinco anos, o atual pontífice improvisa e prega simples e eficazmente. Quando João XXIII foi eleito, em 1958, Primo Mazzolari, um dos mais conhecidos sacerdotes italianos da segunda metade do século passado, disse: “Temos um papa de carne.” Essa mesma impressão se tem de Francisco. Quando Bergoglio foi escolhido, as comparações foram instantâneas. O cardeal italiano Ângelo Bagnasco disse que via nele “a capacidade de governo de João XXIII”. O cardeal Robert Sarah definiu o latino-americano como “uma figura boa”, tal qual o papa do concílio. E o cardeal chinês Joseph Zen explicou que, “quando as pessoas conhecerem Francisco, o amarão como amaram João XXIII”.

Há muitos episódios que entrelaçam esses dois católicos. João XXIII ousou, em 1958, visitar os presos no Natal, gesto que causou censura até dentro da Igreja. Mais de meio século depois, em 2013, Francisco, em sua primeira Quinta-Feira Santa, foi a um instituto penitenciário de menores infratores. Roncalli insistia na “medicina da misericórdia”. Bergoglio disse: “Para mim, a mensagem mais forte de Jesus é a misericórdia.” Os dois conceberam uma ideia de igreja como próxima dos homens, uma amiga, não um “tribunal do mundo”. Ambos, também, apesar de grandes eruditos, procuraram se manter distantes de intelectualismos. Mas o maior símbolo da ligação entre eles se chama Loris Capovilla, 99 anos. Esse quase centenário senhor nomeado cardeal por Francisco no consistório de janeiro foi secretário pessoal do papa João XXIII. Mais: foi confidente e criador da expressão “papa bom”. Capovilla estava relegado ao esquecimento na cidade de Sotto il Monte, onde Roncalli nasceu. O reconhecimento dado a ele pelo argentino foi muito simbólico – como se Francisco quisesse trazer de volta João XXIII, ao resgatar a única testemunha viva de seu breve, porém cirúrgico, pontificado. Uma curiosidade: o novo cardeal foi a única pessoa que viu o pontífice italiano abrir o envelope que continha o terceiro segredo de Fátima.

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No domingo, 27 de abril, as canonizações dos dois novos santos vão entrar para a história. Mais do que contemporizar com as distintas correntes que habitam os muros do Vaticano – e além deles –, como costumam repetir os analistas, o pontífice argentino reforça aos súditos uma importante mensagem: a lufada de renovação que arejou a Igreja Católica no século XX foi obra do empenho pessoal de dois santos, João XXIII e João Paulo II. Que eles iluminem Francisco. 


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