Meio século depois do Golpe de 64, que mergulhou o País no mais sombrio regime de exceção de direitos de que se tem notícia por aqui, entra na ordem do dia uma proposta de revisão da Lei de Anistia que livrou da cadeia torturadores, assassinos, sequestradores e agentes que cometeram barbaridades de toda ordem em nome da ditadura. A impunidade foi perpetrada em forma de um acerto entre militares e políticos para viabilizar a redemocratização. O acordo fez sentido à época da negociação nos idos de 79 para uma distensão lenta e gradual. Não havia outra maneira naqueles dias em que qualquer contestação colocaria tudo a perder. A anistia ampla brotou como saída possível, mas como instrumento de perdão a crimes tão hediondos deixou uma mácula no sentimento geral da Nação, que ainda hoje anseia por justiça. Não existem mais razões para deixar varrida debaixo do tapete tanta sujeira. Diversos países passaram por processo semelhante de depuração a fundo dos episódios e saíram bem melhor dele. Vivemos novos tempos em que o arbítrio não é tolerável. E uma das qualidades deste momento é a de ser favorável a exames de consciência, útil exercício recomendável a todos, em proveito da transparência e lisura de atos dos que detêm o poder. A condição contrária a passar a limpo essa história representa um flerte com o autoritarismo. E muitos parecem finalmente entender assim. Uma ala importante dos próprios militares, por exemplo, mostrou-se disposta a entrar nessa cruzada pela verdade. Na semana passada, as Forças Armadas anunciaram que vão instalar comissões para investigar as violações ocorridas na caserna. É um passo enorme. As Forças Armadas jamais admitiram qualquer responsabilidade pelos abusos cometidos. Ao criar tais sindicâncias elas saem da posição passiva e conivente que carregaram por décadas. É certo, o Brasil como um todo precisa confrontar seus fantasmas e afugentá-los de vez da memória. Só assim consolidará sua condição de uma sociedade politicamente justa, democrática e resolvida com o passado. As violações não podem ser classificadas como mero acidente de percurso, consequência de equívocos. Foram práticas cruéis, abomináveis, inafiançáveis e imprescritíveis, já documentadas, e que vêm sendo aos poucos conhecidas do grande público como políticas de estado de governos militares que assaltaram a liberdade da maioria desvalida. Por isso mesmo, a conveniência do esquecimento não pode se sobrepor à satisfação histórica que milhares de famílias vítimas do sistema merecem receber.