Na manhã da quinta-feira 3, com atraso de um dia em relação ao cronograma original, o papa Francisco assinou o documento que garantiu ao padre jesuíta José de Anchieta o terceiro posto no panteão dos santos brasileiros – ao lado de Madre Paulina e Frei Galvão, canonizados em 2002 e 2007, respectivamente. Apesar de atraírem muitos devotos, os dois primeiros, no entanto, nunca foram tão conhecidos quanto Anchieta, que dá nome a 348 ruas e avenidas, sem contar a rodovia que liga a capital paulista à Baixada Santista, oito bairros e 288 escolas no País. “É um santo muito popular, porque é um herói nacional”, diz padre Cesar Augusto dos Santos, que defendeu a causa do jesuíta no Vaticano. A fama desse missionário é alimentada também por meio dos livros de história. “Você não precisa ser católico para conhecer Anchieta. Ele teve um papel na construção da nação brasileira”, afirma Francisco Borba, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Santos que ajudaram a formar países por meio da catequização são comuns na Europa. Junto aos seus discípulos, os irmãos gregos São Cirilo e São Metódio criaram o primeiro alfabeto eslavo para evangelizar o Leste Europeu e a Rússia no século IX. Por isso, o nome cirílico. Da mesma forma, Anchieta criou no Brasil a gramática tupi para se comunicar com os índios. Na Irlanda, há São Patrício e, na França, Santa Joana d’Arc, emblemática na formação daquela nacionalidade. A influência de Anchieta nos registros históricos brasileiros não para por aí. Nascido nas Ilhas Canárias, ele chegou ao País em 1553, aos 19 anos, e um ano depois participou da missa de fundação do Colégio de São Paulo de Piratininga, hoje Pátio do Colégio, ao redor do qual cresceu a capital paulista. “Apesar das contradições, os missionários estavam a favor dos índios, o que inclusive prejudicou a canonização de Anchieta, porque ele não estava ao lado dos europeus”, diz Borba.

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RELÍQUIA
Manto usado pelo Padre Anchieta está exposto no marco zero de São Paulo,
o antigo Colégio de São Paulo de Piratininga, fundado pelo jesuíta

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O processo de santificação do padre, que demorou quatro séculos, foi muito influenciado pelos altos e baixos da Companhia de Jesus, da qual ele era membro. Depois de sua morte, em 1597, aos 63 anos, no Espírito Santo, os jesuítas ficaram sem dinheiro para patrocinar a empreitada, foram expulsos de Portugal e de suas colônias e sofreram o mais duro golpe ao serem extintos pelo papa Clemente XIV, em 1773. Anos depois, a ordem foi restaurada, mas a Igreja só reabriu o caso do missionário após o terceiro centenário de sua morte, às portas do século XX. Anchieta foi beatificado apenas em 1980, pelo papa João Paulo II. Depois disso, a santificação ficou parada até que, durante a Jornada Mundial da Juventude, que aconteceu no Brasil em julho do no ano passado, o cardeal dom Raymundo Damasceno Assis, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pediu ao papa Francisco que reabrisse o processo. Duas semanas depois, a canonização foi confirmada. Estudiosos relativizam o fato de a escolha ter sido feita justamente pelo primeiro papa jesuíta da história – hoje a ordem é a mais influente da igreja, com 18 mil religiosos espalhados por 130 países. “O sumo pontífice não toma essas decisões em função de preferências pessoais, mas é evidente que ele vai procurar entre os casos disponíveis aqueles através dos quais passará mais facilmente sua mensagem”, diz Borba, da PUC.

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OBRA
Capela de São Miguel, na zona leste da capital paulista. O missionário
fazia percurso de 20 quilômetros por terra e pelo rio Tietê
para chegar ao local, onde ergueu o templo

Ao contrário da maioria dos santos, Anchieta não possui milagres reconhecidos pelo Vaticano. Em 1980, para a beatificação, João Paulo II dispensou o feito e, agora, a promoção se deu através de um processo chamado canonização equipolente, resolução feita a portas fechadas que atrasou um dia por causa da agenda papal. Nessa modalidade, o candidato é alçado a santo por ser alvo de grande devoção. “Eu fiquei surpreso quando descobri que em cada Estado há pelo menos 50 devotos e multiplicadores – o pessoal que distribui santinhos, que faz a propaganda”, diz Santos, o postulador. “Esse não é o primeiro caso da Igreja Católica e também está longe de ser o único. O que mais importa para nós é a vida santa”, afirma o cardeal de São Paulo, dom Odilo Scherer. Para o arcebispo, a importância de um santo não está relacionada apenas à sua relevância espiritual. “Anchieta pacificou as relações entre indígenas e portugueses, fundou várias escolas e foi o primeiro naturalista do Brasil, escrevendo sobre a fauna, a flora e a meteorologia do País”, diz Scherer. Agora, todos esses feitos poderão ser venerados nos altares.

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Fotos: Secretaria da Educação e Cultura do Estado de São Paulo; Danilo Verpa/Folhapress