Quando o microcrédito abriu as portas para a compra de tevês, geladeiras e micro-ondas, estava todo mundo feliz: os fabricantes, os varejistas e principalmente os consumidores de antigos sonhos que finalmente se realizavam. Em seguida veio a festa do carro zero, que fez a alegria das montadoras, mas provocou narizinhos torcidos e os primeiros muxoxos por causa dos congestionamentos. A gritaria aumentou com aeroportos cheios e voos lotados.

Os estreantes em viagens de turismo se divertiam com as novidades enquanto os velhos frequentadores dos aviões reclamavam do fim do champanhe a bordo.

O resumo do incômodo era uma espécie de “tomara que todos ganhem muito dinheiro, contanto que ninguém invada o meu espaço”. Curiosamente, não me lembro dos reclamantes fazerem menção à falta de infraestrutura brasileira. Era como se os aeroportos, a mobilidade urbana e os pontos de lazer estivessem perfeitamente adequados, desde que não tivessem sido “invadidos” por tantos novos frequentadores.

A consequência antes da causa. A recorrente e tão brasileira inversão de valores.
Agora os novos consumidores de tudo que uma pequena parte do Brasil sempre teve querem mais.

Que tal transporte público de boa qualidade, hospitais dignos e segurança pública? Os novos consumidores estão falando sério. Tão sério que foram para as ruas (em protestos difusos e pouco compreendidos) exigir o que o crédito fácil não pode comprar. Sabe o que é isso? Democracia. Não me refiro apenas à possibilidade de protestar livremente – contanto que pacificamente. O que parece pouco evidente para muitos é que as mesmas pessoas que tiveram acesso ao consumo passaram a consumir também informação. A gente só sabe que está sendo humilhado quando compreende o significado de humilhação. Um hospital que não o atende, um ônibus lotado, um assalto. Tudo aquilo que o pagamento de impostos deveria providenciar
que funcionasse bem para os cidadãos de bem.

Muito me impressiona o ar de susto da velha elite com as manifestações que fogem do controle, inclusive da polícia. Subitamente, pesquisas apontam rejeição aos protestos que eram antes aplaudidos! O problema está na manifestação ou na origem dela? E, se há gente violenta infiltrada em movimentos pacíficos, haveria oportunidade para tanto se não houvesse motivo para manifestação? Discutir o efeito antes da causa é apenas responsabilizar a radicalização da consequência e ignorar a legitimidade da origem dos protestos.

A massa crítica brasileira tinha a obrigação de discutir, nesse momento, a falta de crescimento econômico, a falência gerencial da autoridade pública e os níveis inconcebíveis de corrupção.

A sociedade brasileira não ficou mais justa porque milhões de pessoas puderam, de repente, comprar um computador. Mas ficou mais consciente daquilo que é injusto. Não vai adiantar nada defender os que tentam promover essa justiça com as próprias mãos. Nem continuar reclamando que a polícia não tem competência para lidar com protestos. Nem proibir máscaras nas ruas. De novo, a questão é a causa, não a consequência. Resolver o que é fundamental é o único caminho possível para saciar a sociedade. Façamos valer nossos votos e pode ser que nossos impostos voltem também a ter valor.

Ana Paula Padrão é jornalista e empresária