O silêncio do ex-agente do serviço secreto soviético Vladimir Putin sobre a situação política da Ucrânia soa como um estrondo nas salas de chefes de Estado do mundo inteiro. Ninguém sabe com certeza quais serão os próximos passos do presidente russo, mas ninguém duvida que logo eles serão notados. Acostumada a tratar a Ucrânia com mão de ferro, a Rússia não dá sinais de que aceitará passivamente que a região escape de sua órbita de poder para ampliar laços com os Estados Unidos e a União Europeia. Para Putin, perder a influência sobre os ucranianos seria colocar muita coisa em risco. Além de ter a sua imagem desgastada internamente, ele enfrentaria o perigo de ver esse movimento se repetir em outras fronteiras. Uma Ucrânia pró-europeia significaria o fim do colchão de segurança contra a Otan (organização militar que une EUA e Europa) formado por territórios que integraram a União Soviética e ainda vivem sob controle estreito de Moscou. Do ponto de vista econômico, os perigos não seriam menores: a Ucrânia é a rota dos gasodutos por onde passam as exportações de gás natural da Rússia.

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O presidente russo Vladimir Putin não dá sinais de que aceitará passivamente
a perda de influência na Ucrânia e pode até incentivar movimentos separatistas

No sábado 22, o Kremlin sofreu um revés pesado com a deposição da Presidência de seu aliado incondicional, Viktor Yanukovych, após uma rebelião popular que durou três meses e deixou quase uma centena de mortos. De imediato, o governo provisório de Oleksandr Turchynov, empossado em lugar de Yanukovych, anunciou a intenção de levar a Ucrânia para o bloco europeu. Estados Unidos e União Europeia recomendaram, sem combinar com os russos, que a vontade do novo governo fosse respeitada. Durante alguns dias, a diplomacia de Moscou apenas fez muxoxos contra o que tratou como um golpe de Estado patrocinado pelos nacionalistas ucranianos. Antes do fim de semana, no entanto, já começaram a surgir indícios de que Putin vai jogar duro para preservar seus interesses econômicos e geopolíticos.

Foi o próprio Turchynov quem tornou pública a primeira hipótese sobre o que a Rússia pode tentar para reverter o cenário pró-Ocidente: a desagregação da Ucrânia. “O separatismo é uma grave ameaça ao nosso país”, afirmou Turchynov. O novo governo ucraniano teme que Putin comece patrocinando a independência da Crimeia, região onde está situada uma das mais importantes bases militares russas, na cidade de Sebastopol. A Península da Crimeia jamais se sentiu parte de uma Ucrânia ocidentalizada. Na terça-feira 25, mais de mil manifestantes saíram às ruas de Sebastopol aos gritos de “Rússia, Rússia, Rússia”, o que se repetiu em cidades vizinhas. Em todo o lado oriental da Ucrânia a influência de Moscou é clara, em decorrência de um histórico projeto de dominação cultural e econômica. Ali há descendência direta dos vizinhos e o idioma russo predomina e se perpetua nas escolas.

A parte ocidental do país fala ucraniano e cultiva um secular ressentimento contra os russos pelas perseguições e dominações sofridas. Ao longo da história, czares da Grande Rússia e ditadores soviéticos cometeram genocídios e esmagaram grupos de resistência na Ucrânia. O ódio ainda sustenta facções nacionalistas radicais de direita que, no século passado, preferiram marchar com nazistas a aliarem-se às tropas de Josef Stalin. Hoje, a principal delas é o Svoboda (Partido da Liberdade), que dá guarida a antigas lideranças abaladas por gestões corruptas e que participaram de negociações com políticos pró-Oriente. A Ucrânia dividida fica evidente também nas urnas, onde todas as eleições têm gerado acusações de fraude por ambos os lados. Na quarta-feira 26, Putin ordenou o envio de tropas para a fronteira entre os dois países. Mas especialistas em política internacional não acreditam em uma intervenção direta armada do Kremlin, como ocorreu na Geórgia, outra ex-república soviética, em 2008. Uma ação militar, além de dispendiosa, abalaria a credibilidade da gestão de Vladimir Putin junto à comunidade internacional.

Para completar o conturbado cenário ucraniano, a economia do país beira a insolvência. Não bastasse a debandada dos investidores internacionais diante do cenário incerto, o país possui uma dívida de curto prazo de US$ 60 bilhões e apenas US$ 17 bilhões em reservas. A ajuda russa de US$ 15 bilhões atrelada a um contínuo alinhamento político e ao fim das negociações com a União Europeia – fatos detonadores das manifestações populares – também foi suspensa com a queda do ex-presidente. Isso sem contar a dependência da indústria e da produção agrícola ucraniana a Moscou, seu principal parceiro comercial. A Ucrânia se beneficia do envio russo de gás natural subsidiado em 30%, sua principal fonte de energia. Enquanto isso, um desembolso financeiro, de fato, da União Europeia esbarra na burocracia do bloco. Para se unir à Europa, os ucranianos vão precisar de mais do que boas intenções ocidentais.  

Como nos palácios dos czares

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TESOURO
Ucraniano exibe joia encontrada no palácio

Um dos símbolos do poder do presidente deposto da Ucrânia, Viktor Yanukovych, a oponente mansão onde ele morava se tornou local de visitação de opositores.

O forte esquema de segurança que protegia o palácio de 140 hectares, nos arredores da capital Kiev, desapareceu assim que Yanukovych fugiu. Todos os dias, centenas de ucranianos visitam o lugar e descobrem uma realidade bem diferente da do país, assolado por uma crise econômica sem precedente. Detalhes em ouro adornam louças dos banheiros e portões. A residência, agora estatizada pelo novo governo, conta também com sofás feitos de couro de jacaré, campo de golfe e um acervo de livros raros na biblioteca. Há ainda uma coleção de motocicletas e automóveis antigos, que contam com um posto de gasolina exclusivo para abastecê-los. A lista de excentricidades de Yanukovych tem também um barco viking e um zoológico particular. Para evitar pilhagens, o local está sendo protegido por grupos paramilitares simpáticos ao novo governo.

Fotos: Alexei Nikolsky, Yuriy Dyachyshyn – AFP