Neste ano, a família Schurmann, que ficou conhecida pelas suas aventuras de veleiro ao redor do mundo, decidiu ir mais longe – e também mais fundo – do que de costume. No segundo semestre ela começará sua terceira circum-navegação da Terra e, antes disso, em março, explorará uma fronteira até agora desconhecida pelo clã, o fundo do mar. A família vai atrás do naufrágio do submarino nazista U-513, afundado no litoral de Santa Catarina durante a Segunda Guerra Mundial. Após Vilfredo Schurmann, 65 anos, o pai, ouvir a história sobre a embarcação alemã de um de seus companheiros de viagem, foram anos de estudo e buscas ao lado de uma equipe de pesquisa para encontrar o encouraçado em 2011, a cerca de 90 km de Florianópolis. Agora, com uma autorização da Marinha para filmar a relíquia, eles pretendem produzir um longa-metragem com as imagens coletadas – o lançamento está previsto para a segunda metade de 2014. Logo depois dessa empreitada, o clã se lançará ao oceano novamente, agora para velejar pela terceira vez aos confins do planeta. A desculpa para mais uma jornada, como dizem os próprios aventureiros, é achar pistas que ajudem a esclarecer uma teoria polêmica: a de que os chineses cruzaram os sete mares um século antes dos europeus. A ideia ganhou força com o livro “1421: O Ano em que os Chineses Descobriram o Mundo”, do oficial aposentado da Marinha britânica Gavin Menzies. A hipótese é rechaçada por acadêmicos, mas transformou o inglês num best-seller. “Queremos buscar evidências para um cientista pesquisar mais a fundo e comprovar a história”, afirma David Schurmann, 39 anos, o filho do meio.

01.jpg

A família – a primeira brasileira a girar o planeta num veleiro – faz parte de um grupo de pessoas viciadas em desafios. Diferentemente do que alguns imaginam, esses aventureiros da vida real estão longe da acepção de “irresponsável” que às vezes acompanha a palavra. Pelo contrário, são metódicos e planejam muito bem cada passo de suas jornadas. Quando saíram para sua primeira grande viagem, em 1984, com três filhos a tiracolo – de 7, 10 e 15 anos –, os Schurmann já acumulavam dez anos de preparação, desde que se apaixonaram pelo mar durante um passeio de barco no Caribe. “Fizemos curso de navegação, ficamos em cima das cartas náuticas, aprendemos mesmo”, diz Heloísa Schurmann, 65 anos, a mãe. Para a maioria das expedições, é claro, condicionamento físico também é fundamental, mas os conhecimentos técnicos podem ser até mais importantes. O alpinista Thomaz Brandolin, 54 anos, primeiro brasileiro a chegar ao Polo Norte, resume: “O que te leva não são só as pernas, mas também a cabeça. Que combustível funciona no Ártico? Quantos litros carregar? Tudo que você leva pode congelar, são muitos detalhes. O aventureiro despreparado morre no caminho.” O infeliz exemplo do viajante americano Christopher McCandless, que morreu sozinho no Alasca, foi narrado no filme “Na Natureza Selvagem”, de 2007.

02.jpg

Viciados em adrenalina

“Certas pessoas têm um espírito empreendedor e conseguem se estruturar, por isso suas aventuras têm mais chance de dar certo”, afirma a professora Katia Rubio, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em psicologia do esporte. Segundo ela, esses viciados em adrenalina não se dão por satisfeitos com as emoções do cotidiano. “Alguns têm prazer em acompanhar o crescimento do filho, outros precisam ir para a Antártica.” Para a maior parte dos aventureiros, o gosto pelo desafio é a maior motivação – mas nem sempre do jeito que a maioria imagina. Famoso pelas travessias oceânicas solitárias, Amyr Klink gosta mais de colocar projetos de pé do que da viagem em si. “A aventura não é ir para a Antártica sozinho, mas fabricar o barco”, diz. Para a nova expedição intercontinental, a família Schurmann também projeta pela primeira vez sua própria embarcação, o veleiro Kat – que leva o nome da filha adotiva que morreu em 2006, aos 13 anos, em decorrência de Aids.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

03.jpg

Os propulsores do espírito aventureiro, porém, variam bastante. Brandolin já correu atrás de metas ambiciosas, como a conquista do Polo Norte, mas hoje prefere estabelecer uma conexão com a natureza. Numa viagem recente a uma cadeia de montanhas isolada no Alasca, levou equipamentos diferentes do habitual: telas e pincéis. Se alguns buscam transcendência, outros querem superar limites. É o caso de recordistas e pioneiros, como os que cruzaram oceanos no período dos descobrimentos e chegaram ao espaço no século passado (veja o quadro abaixo). O gosto pela sensação do perigo real também acompanha vários deles. Em sua última viagem ao Alasca, o próprio Brandolin preferiu não levar armas de fogo, apesar do risco de encontrar animais selvagens – o que, aliás, aconteceu (nessa expedição ele deu de frente com um lobo e um urso). Todos os aventureiros, mais ou menos precavidos, sabem que correm o risco de se machucar gravemente ou até morrer durante as jornadas. A médica de áreas remotas Karina Oliani, 31 anos, já praticou dezenas de esportes radicais, escalou quatro dos sete picos mais altos de cada continente e quase perdeu um olho ao subir o Everest, a montanha mais alta do mundo. “Minha lanterna apagou e eu tirei a máscara por 20 minutos, mesmo sabendo que corria sérios riscos. Meu olho esquerdo congelou, e o quadro só não piorou porque o guia nepalês que subia comigo teve a ideia de lambê-lo.” Situações como essa não são raras, independentemente do local. Os Schurmann já perderam o mastro numa tempestade e quase foram atacados por piratas. Sozinho no oceano, Amyr Klink por pouco não atingiu um iceberg.

04.jpg

Herança genética

Especialista em psicobiologia e psicologia esportiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Mara Raboni aponta que o vício pela adrenalina pode também ser uma característica biológica. “Algumas pessoas têm resistência maior ao estresse e outras até um gosto por encarar esse tipo de situação. É uma característica genética que afeta o funcionamento neuroquímico”, afirma. A professora também diz que, além dos genes, a cultura e o ambiente são fatores importantes na construção do espírito de aventura. Pierre Schurmann, 45 anos, o primogênito da família, brinca: “Está no DNA, mas meus pais também fizeram uma lavagem cerebral. Todos os livros em casa eram sobre piratas e expedições.” Segundo Mara Raboni, o cérebro de uma criança é mais moldável, e isso pode ajudar a explicar por que o filho mais novo, Wilhelm Schurmann, 37 anos, que saiu para dar a volta ao mundo com apenas 7 anos, vive hoje em constante movimento. “A minha vida foi no mar, tanto que eu não consegui ficar parado e fui girar o mundo em campeonatos”, diz ele, que pratica windsurfe profissionalmente. “Se passo mais de um mês e meio num lugar, fico agoniado.” Na nova viagem rumo ao Oriente, mais uma geração pode ser fisgada pelo vício da família: Emmanuel, 22 anos, filho de Pierre, é o primeiro neto Schurmann a embarcar numa jornada mundial.

05.jpg

A maioria dos aventureiros vem de uma linhagem de pessoas que ousavam mais do que a média. “Meu pai era um empresário maluco, um visionário”, conta Amyr Klink. “Muitos dos negócios dele deram certo, outros não, mas ele conhecia o mundo muito bem e morou em mais de 80 países.” O avô de Alessandro Matero, 39 anos, que faz travessias oceânicas com pranchas de surfe, caiaques e canoas, foi nadador de águas abertas, canoísta e velejador. “Ele me influenciou muito”, reconhece. O gosto pela emoção é tão forte nessas pessoas que ninguém fala em aposentadoria. No máximo, cogitam diminuir o ritmo. “Nunca vou parar, talvez pegar mais leve”, diz Matero.

Profissionalização

Pagar por esses desafios pode parecer um luxo, mas nem sempre os aventureiros têm vida fácil. Alguns, como a família Schurmann, se profissionalizaram e buscam patrocínios para bancar suas expedições. Outros tentam aliar o espírito desbravador à rotina profissional. A médica Karina Oliani aprendeu a pilotar um helicóptero para fazer resgates em regiões inóspitas. Além disso, já apresentou programas de esportes radicais e tem uma produtora que faz filmes sobre suas aventuras. “Dane-se que não tiro férias há cinco anos. Penso no que faria se tirasse e é exatamente o mesmo o que eu faço trabalhando”, diz. O alpinista Thomaz Brandolin adotou uma solução que é comum a muitos aventureiros. Ele financia suas jornadas proferindo palestras e realizando workshops em que traça paralelos entre os desafios dos esportes na natureza e o cotidiano empresarial. Mas, no começo, dependeu da ajuda do pai e entregou pizzas para se sustentar na Califórnia, onde morou na juventude em busca de emoções radicais. Principalmente no início, é preciso persistência e muitos gastam fortunas. Há também os que nunca tentaram transformar a paixão num negócio. É o caso de Leda Zogbi, 51 anos, que explora cavernas pelo menos uma vez por mês desde 1992, aprendeu a fazer mapas desses locais e, desde então, já desenhou 250 deles. “Eu me separei aos 27 anos e comecei a ir para cavernas com 29. E aí foi um casamento, porque acabo dedicando muito do meu tempo livre para essa atividade”, diz ela, que viaja pelo Brasil para abrir concessionárias de uma empresa automotiva.

06.jpg

Heróis modernos


Segundo a psicóloga Mara Raboni, da Unifesp, pessoas como Leda e os outros aventureiros citados nesta reportagem encarnam modelos ideais e são vistos como heróis. “São admirados porque têm mais coragem, força ou ousadia, e assim vão até onde outros seres humanos não chegam”, afirma. Esses ídolos, no entanto, costumam sair do pedestal quando questionados sobre o segredo do seu sucesso. “Nós não somos especiais, fizemos coisas simples que qualquer um pode fazer. O que falta a muitas pes­soas é perseverança, foco e planejamento”, diz Vilfredo Schurmann. Para especialistas, as pessoas não se conhecem bem, por isso não vão em busca de seus reais desejos. “Muitos não se mexem porque não sabem o que é efetivamente importante para eles. Quando você descobre o que é fundamental em sua vida, não tem quem pare”, diz Katia Rubio, da USP. Os aventureiros concordam. “Todo mundo tem um Everest. Seu sonho não precisa ser chegar à montanha mais alta do mundo, mas uma coisa muito mais simples”, afirma Karina Oliani. O segredo dela? “Você veio para a Terra e tem só uma vida, que pode acabar amanhã. Vai ficar sentado no sofá com preguiça de fazer as coisas?” 

07.jpg

08.jpg

FOTOS: João Castellano/Istoé; Arquivo pessoal, Daniel Menin; Alexandre Cappi; Kelsen Fernandes/Ag. Istoé

 


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias