– Pouco importava se ainda havia alguém vivo ou onde o tiro pegava, eles tombavam para trás e caíam dentro da cova. Depois chegava o próximo pelotão com cinza
e cal clorada para jogar em cima.
– Eles jogavam cal em cima? Por quê?
– Ora, porque eles se decompõem, e assim não fede tanto.
– E os que caíam e ainda não estavam mortos?
– Azar o deles, apodreceram lá embaixo.

O diálogo acima não faz parte de um interrogatório: é uma conversa entre dois soldados. Ele poderia ter acontecido na Bósnia ou em Ruanda, mas se passou muito antes, numa prisão inglesa para militares alemães capturados na Segunda Guerra Mundial. Que a máquina de guerra nazista praticava o extermínio de civis e judeus não é novidade. O que esse depoimento traz de novo, com possibilidade inclusive
de provocar uma revisão histórica do conflito, é a forma como foi obtido. Essa conversa foi gravada no calor da hora, durante a guerra, por microfones ocultos pelos aliados nessas celas especiais. São, portanto, declarações não contaminadas pela culpa ou pelo distanciamento do tempo. Mais ainda, os interlocutores eram provenientes da Wermacht, as forças armadas do Terceiro Reich, cujos oficiais sempre negaram saber ou ter participado do genocídio judeu, atribuído à truculenta SS. É esse detalhe que confere relevância ao livro “Soldados” (Companhia das Letras), do historiador Sonke Neitzel e do psicólogo social Harald Welzer, ambos alemães: ele alinha uma centena de conversas entre prisioneiros, contextualizadas e analisadas com aparato teórico visando a ampliar o entendimento de como uma população inteira se deixou levar pela mais completa barbárie.

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DERROTA
Soldados alemães rendidos por um combatente americano (acima)
e recebendo pão em uma prisão: conversas gravadas nas celas

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Trata-se da catalogação de variados crimes de guerra e contra a humanidade: estupros, recusa de socorro a soldados capturados, massacres de civis e explosões de navios e aviões comuns. “Na nossa divisão me chamavam de ‘sádico por vocação’.

Eu derrubava tudo – ônibus nas ruas, trem de passageiros. Tínhamos ordem de disparar contra a cidade inteira. Acertei todos os ciclistas”, gaba-se o piloto Fischer. “Os alvos mais bonitos eram uns casarões em cima de uma montanha. Quando vínhamos voando assim, baixinho, e de repente, zuuuum, descarregávamos com tudo, as janelas explodiam e o telhado ia parar lá em cima”, comenta o piloto Budde. É a vez de Von Griem: “Avistamos um castelo grande, onde parecia estar acontecendo um baile ou coisa assim, havia muitas senhoras de vestido e uma capela. Passamos direto pela primeira vez, depois fizemos mais um ataque, e a limpeza – meu amigo, isso era uma diversão.”

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O que espanta nesses depoimentos é a naturalidade com que os soldados praticavam a mais torpe crueldade. Essa atitude, nomeada pela filósofa Hannah Arendt como “a banalidade do mal”, preside o diálogo entre o soldado Bartz e o primeiro-tenente Fritz Huttel, da Marinha. “O que fazem com a tripulação dos navios afundados?”, pergunta Bartz. “Nós sempre deixamos que se afoguem.

O que mais poderíamos fazer com elas?”, responde Huttel. Nas execuções em massa, o tom é objetivo, quase técnico, como lembradas pelo major-general Walter Bruns: “Eles (os judeus) eram obrigados a deitar como sardinhas dentro de uma lata, com a cabeça voltada para o meio.

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Lá em cima havia seis atiradores com submetralhadoras, que davam um tiro na nuca. Quando cheguei, ela já estava cheia (…) e ainda havia uma fila enorme de quilômetro e meio, que avançava a passos lentos.”

Neitzel descobriu essas gravações secretas, todas transcritas em alemão e traduzidas para o inglês, ao pesquisar no National Archives, em Londres, em 2001. Com o mesmo faro, ele deparou-se com acervo semelhante em Washington. Somados, os documentos reúnem 148 mil páginas de escutas clandestinas, estudadas com a ajuda de um software de análise de conteúdo. Seu companheiro de pesquisa Welzer aconselha o leitor a se afastar do julgamento moral.

Do contrario, “compreendemos somente o nosso próprio mundo, jamais o dos soldados”.

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Fotos: Glow Images