Joan Miró falava pouco. Expoentes da vanguarda moderna se irritavam com a abstinência do catalão nos debates políticos durante o nascimento de movimentos artísticos da primeira metade do século XX. Certa vez, em Paris, Max Ernst chegou a agarrar Miró e colocar uma corda em seu pescoço para que ele se pronunciasse na marra. A cena inspirou uma obra de Man Ray (“Retrato de Joan Miró”, de 1930), mas não funcionou. Tratava-se de uma questão de feitio, de personalidade, mas também de direção: Miró buscava uma arte que traduzisse o que está além das questões do mundo e para isso (repetia sempre que lhe perguntavam) precisava de silêncio.

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FORA DE CASA
Joan Miró em seu ateliê em Paris, em 1957

“Miró era avesso ao aprofundamento teórico da sua pintura”, conta o fotógrafo espanhol Alfredo Melgar, amigo do artista e curador da mostra “A Magia de Miró”, coleção de 69 obras e 23 fotografias expostas pela primeira vez no Brasil, na Caixa Cultural São Paulo. As fotos da exibição foram tiradas pelo próprio Melgar, também conde de Villamonte, e trazem momentos de intimidade do artista em seu ateliê – que, ao contrário de seu conterrâneo Pablo Picasso, era avesso à publicidade.

Melgar conheceu Miró nos anos 1970, momento em que sua obra já era reconhecida mundialmente e que tinha encontrado uma linguagem de símbolos e grafismos, referências universais das possibilidades lúdicas das artes plásticas. “Graças a Miró, a pintura juntou-se ao reino da poesia”, afirma a historiadora da arte Janis Mink, autora de “Miró”, da editora Taschen. “Foi um pintor visionário que (diferentemente dos colegas) tentava levar uma vida de operário com família para sustentar”, escreve ela. Era assim que o pintor aparecia em público, sempre acompanhado de sua mulher, “dona” Pilar Juncosa. Era, nas palavras de Melgar, a imagem do casamento perfeito, de onde se depreendiam “a sobriedade, a ordem, o trabalho e a disciplina típicos dos que vêm da Catalunha”, um contraste com a boemia, os romances e a iconoclastia que tomavam conta de Paris.

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ÚLTIMO ATELIÊ
Acima, imagem do estúdio em Palma de Maiorca, o último endereço do pintor,
em retrato realizado em 1980 pelo colecionador e amigo Alfredo Melgar.
Abaixo, "La Cascade", litografia sobre papel de 1964

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Assim, enquanto os artistas espanhóis marchavam em fuga para a capital da modernidade, Miró refugiava-se no interior rural da Catalunha, nas terras da família, que olhava sua escolha profissional como um “mau caminho”. Desses retiros, nasceram obras-chave de sua trajetória, como a tela “A Quinta” (1921-1922), comprada por Ernest Hemingway, conta-se, com todas as economias que o escritor tinha.

As obras da coleção de Melgar datam dos anos 60 ao final da vida do pintor, em 1983. Quase todas são sobre papel, um suporte eleito principalmente durante os muitos conflitos pelos quais passou – desenhos sempre foram mais fáceis de serem salvos em caso de bombardeios que telas. Já os retratos são da década de 1970, quando o pintor convidou Melgar para fotografá-lo. “Meu trabalho não era reconhecido, eu não era ninguém”, conta à ISTOÉ Melgar, que hoje mantêm uma galeria em Madri com as obras que foi adquirindo a partir do momento em que entrou em contato com o universo modernista.

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RUDIMENTAR
Acima, "Personnage", desenho sobre papel-cartão de 1977;
abaixo "Femme Devant la Lune", obra do mesmo ano, realizada sobre papel-lixa

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Miró – sobrenome herdado do avô ferreiro – nasceu em Barcelona, em 1893. Assistiu a 44 mudanças do governo de seu país, viu duas guerras mundiais e viveu de perto a Guerra Civil Espanhola. Entende-se a razão de alguns críticos terem enxergado um índice de escapismo nas criaturas feitas de formas puras e cores chapadas, como rabiscos infantis.

Mas o exercício de Miró, participante da primeiríssima geração de surrealistas, era semelhante ao de Leonardo Da Vinci. Ele queria que sua arte não se ativesse a correntes e caminhos, para que pudesse trazer algo verdadeiramente novo para o mundo, como o renascentista. “Como é que encontrava todas as minhas ideias para quadros? Pois bem, à noite, já tarde, voltava ao meu ateliê na rue Blomet e deitava-me, às vezes, sem sequer ter jantado. Tinha sensações que anotava no meu caderno. Via aparecer formas no meu teto.”

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Foto: Michel Sima/Rue Des Archives/Latinstock, Divulgação


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