Nunca, até os estudos de Sigmund Freud, havia se pensado nos sonhos como matéria da ciência. E se a incorporação do inconsciente ao estudo do comportamento foi a grande revolução do autor de “A Interpretação dos Sonhos”, a sua descoberta deve muito a outra substância impalpável: a imaginação literária. Freud era um leitor meticuloso e apaixonado, guardava mais de 20 mil livros em sua biblioteca vienense. Adolescente, emprestava falas de William Shakespeare e Johann Goethe para traduzir seus próprios estados de espírito. E, mais importante: até o fim de sua vida, alimentou com literatura teorias que mudaram para sempre os tratamentos para os males da alma.

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Capa do livro de Pontalis e Mango e, acima, o autor de "A Interpretação dos Sonhos"

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É sobre a intensa confluência entre Freud e grandes autores de seu tempo (e de antes dele) o livro “Freud com os Escritores” (Três Estrelas), escrito a quatro mãos pelos psicanalistas J.B. Pontalis e Edmundo Gómez Mango. Lançado originalmente pela prestigiada editora Gallimard, na França, o volume já valeria a atenção por trazer a produção final de Pontalis, um dos maiores intelectuais franceses da atualidade, morto no ano passado. Mas costurando as relações pessoais, as preferências e as frustrações do criador da psicanálise, o lançamento acaba desenhando um retrato afetivo de Freud, que amava as histórias, seus personagens e autores como uma família que
até hoje mantém de pé e atual sua vasta produção intelectual.

É de Pontalis o capítulo sobre a fértil ligação de Freud com o palco e, mais profundamente, com os personagens de William Shakespeare. “Freud revelou que o teatro de Shakespeare, com a força inigualável de sua linguagem poética, representa a ‘cena’ ­psíquica e os movimentos mais escuros e mais poderosos da psique”, explica Gómez Mango, em entrevista à ISTOÉ, psiquiatra uruguaio radicado na França. Assim, Hamlet se qualificaria como o “neurótico universalmente célebre” (célebre pela sua atualidade, explica Pontalis) e Lady Macbeth seria a primeira compulsiva diagnosticada na literatura científica, no artigo “Obsessões e Fobias”, publicado em 1895.

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O gosto e as preferências pessoais de Freud ditavam diretamente sua produção intelectual. Dá para imaginar, por exemplo, que se o escritor Fiódor Dostoievski não tivesse sido traduzido do russo para o alemão ou o inglês, a pulsão de morte, um conceito fundamental na psicanálise, poderia nem existir. Freud amava Dostoievski. Para ele “Os Irmãos Karamazov” era “o romance mais grandioso já escrito” e refletia aspectos da personalidade de seu autor que ocuparam parte importante do pensamento psicanalítico. “O escritor parece transmutar-se num de seus personagens, o criminoso inocente, deixando-se arrastar por uma forte pulsão de destruição que visa sua própria pessoa e se manifesta sob a forma de profundo sentimento de culpa e masoquismo”, escreveu Freud. Para os autores, os laços que unem a psicanálise à literatura são “mais fortes e estreitos do que com as demais formas artísticas, como a pintura ou a música.” Mas o livro leva a conclusão mais longe um pouco: sem literatura possivelmente nem existiria a psicanálise.

Além da biblioteca de Freud, os autores elencaram escritores com quem ele conviveu e se correspondeu com alguma ou muita intensidade, caso do conterrâneo Stefan Zweig e do alemão Thomas Mann. Com o primeiro, de quem guardava, nas palavras dos autores, “20 anos, a diferença de uma geração”, Freud trocou textos e revisões de trabalhos, até o fim da vida de Zweig, que se suicidou no Brasil no início dos anos 1940. Amigos, que por vezes se desentendiam, mantinham uma proximidade que permitia algumas confissões, como da inveja que o criador da psicanálise sentia de seus amigos com trabalho mais criativo. Em relação a Thomas Mann, compartilhava a admiração e influência de Goethe – não por acaso “Doutor Fausto”, último grande romance de Mann, é dedicado a Freud. Nesse ponto aparece a outra mão da influência entre as áreas: em 1926, Thomas Mann declarou que “Morte em Veneza”, livro de 1912, possivelmente o mais conhecido de todos do autor, foi escrito sob o impacto da recém-nascida psicanálise.

Fotos: Imagno/Getty Images, AISA/World Illustrated/Photoshot; akg-imagesa
 


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