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No dia 9 de janeiro, um jovem carioca anunciou no Twitter: “Novo esporte dos amigos, caçar vagabundo roubando pra meter a porrada!”. Quase um mês depois, o autor da frase, o estudante Lucas Corrêa Pinto Felício, de 20 anos, estava detido na 9ª Delegacia de Polícia (Catete) junto com outros 13 amigos que teriam tentado espancar dois moradores de rua no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Eles fazem parte de um novo fenômeno carioca: a formação de grupos de jovens que se armam para fazer o que consideram justiça com as próprias mãos. O perfil dessas turmas, que se organizam também em outras localidades da zona sul, como Copacabana, Laranjeiras e Botafogo, é similar. Todos são de classe média, estudantes, têm idade, majoritariamente, entre 18 e 22 anos, são brancos, praticam artes marciais ou frequentam academias e a maioria usa motocicleta. Eles armam-se com paus, barras de ferro e ferramentas de carro, combinam as ações através de redes sociais e saem às ruas entre 21h e 23h. São jovens que destilam ódio, na internet, contra menores infratores e assaltantes, embora haja relatos de agressão contra mendigos também.

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VINGANÇA
Na semana passada, jovens de classe média do Flamengo
com bastão de madeira para agredir assaltantes

Bonito e fortão, Lucas é considerado “normal” pelos vizinhos do prédio onde mora, numa rua transversal do Flamengo. Estudou na escola particular Stockler, na Gávea, bairro nobre, e hoje é universitário. Ao atender telefonema da reportagem de ISTOÉ, disse que não daria entrevista e desligou. Depois, apagou suas páginas nas redes sociais. Quando jovens como ele se travestem de justiceiros e se unem em bandos, tornam-se extremamente violentos e vingativos. Os atos criminosos que praticam não chegam às estatísticas oficiais de violência, no entanto, porque as vítimas não recorrem à polícia para denunciá-los, já que, na maioria das vezes, são infratores e fugitivos. Os cariocas, que cada vez mais assistem às cenas de tortura e espancamento das janelas de casas e carros, se dividem. Alguns aprovam a barbárie que ignora a lei, outros ficam estarrecidos com o grau de selvageria.

Na região do Flamengo, o número de roubos a pedestres chegou, apenas no mês de outubro do ano passado, a 186 casos, contra 82 no mesmo período de 2012. Na internet, a revolta é compartilhada: o publicitário Michel Lima postou no Facebook, no dia 29 de janeiro, foto de um homem ferido após ataque de assaltantes no Flamengo e desabafou: “Cidade Maravilhosa para quem?”. Quatro mil pessoas reproduziram seu post. O auge da tensa situação vivida na zona sul carioca foi a horrível cena que veio a público na semana passada, quando um adolescente negro de 15 anos foi espancado e preso, nu, a um poste, pelo pescoço, por uma trava de bicicleta. A imagem, que remete aos tempos da escravidão, correu o mundo.

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A antropóloga Alba Zaluar, pesquisadora do Instituto deEstudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ressalta que esse tipo de “justiçamento”, agora adotado por jovens de classe média, está presente no País todo, na forma de grupos de extermínio ou de milícias. “A polícia tem problemas, mas é melhor acreditarmos nela do que nessas atitudes bárbaras”, afirmou. O menino foi solto graças à intervenção da artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, diretora da ONG Uerê, que acolhe crianças e adolescentes. Agora, no entanto, ela recebe ameaças de morte pelo gesto. “Estão me xingando só porque chamei os bombeiros para libertar o menino. Se fosse um cão, estaria num pódio”, desabafa. Não é o primeiro episódio que ela testemunha. Este mês, ela viu da janela de sua casa, também no Flamengo, um grupo de oito homens espancarem mendigos que dormiam nas calçadas.

Na segunda-feira 3, um grupo de 14 jovens chegou a ir para a delegacia, suspeitos de serem os justiceiros do Flamengo. Eles negaram envolvimento com a agressão ao menor, mas estão sendo investigados. ISTOÉ conversou com um deles, um estudante de psicologia de 20 anos, que admitiu perseguir bandidos. “Moro no Flamengo há 19 anos. Sou do bem, mas a situação está complicada, e piorou depois que a avó de um amigo foi assaltada na semana passada. Levaram os pertences dela, a derrubaram no chão e ela quebrou a bacia”, contou o rapaz. “Estamos tentando defender nosso bairro. Só agredimos ladrões.”

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"Estão me xingando só porque chamei os bombeiros
para libertar o menino. Se fosse um cão, estaria num pódio"

Yvonne Bezerra de Mello, diretora da ONG Uerê, que acolhe crianças e adolescentes.
Ela foi a responsável pela libertação do adolescente (acima) espancado e preso,
nu, a um poste, pelo pescoço, por uma trava de bicicleta

A delegada Monique Vidal, da 9ª DP, instaurou inquérito e está tentando obter imagens de câmeras de segurança para identificar os agressores do garoto preso ao poste. Também está sendo averiguado se Lucas Felício e o estudante Ricardo de Carvalho Matos, outro detido no grupo de Lucas, sob acusação de formação de quadrilha e lesão corporal por ataque a meninos de rua, estão envolvidos com o caso. Morador do Humaitá, na zona sul, tão logo saiu da delegacia, Ricardo se mudou temporariamente para a casa de um parente e declarou no Twitter: “Fuuuui, fora de sinal!”

Em Copacabana, há informações de que os justiceiros são comerciantes. Na tarde da terça-feira 4, um menor que roubou o cordão de uma mulher, no bairro, foi detido e deixado com os pés amarrados na rua. Na região, outro menor foi fotografado cercado por grupos que queriam linchá-lo por ter tentado roubar comida de um supermercado. A socióloga Julita Lemgruber ressalta que, se não houver punição, a cidade corre o risco de se ver refém desses grupos. “Pode virar um exemplo e se repetir”, alerta. A sociedade civil já marcou dia e hora para dar sua resposta: no domingo 9, moradores vão abraçar, simbolicamente, o Aterro do Flamengo, e pedir paz.

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Fotos: Guilherme Leporace/ag. o globo; Agência O Dia; Fabio Rossi/Ag. O Globo


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