Na manhã da terça-feira 25, uma reunião no Palácio do Planalto deu sangue novo à permanência, no governo, do ministro das Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia. Num encontro com a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, e o secretário particular do presidente Lula, Gilberto Carvalho, Mares Guia apresentou sua defesa sobre o Mensalão Mineiro – a operação de um caixa paralelo na campanha pela reeleição do então governador Eduardo Azeredo, em 1998.

Reiterou que nunca escondeu o caso do presidente e reforçou sua inocência. Ouviu deles que Lula resolvera não mais ficar “na defensiva” em relação a denúncias que envolvam ministros. O presidente se arrependeu do fato de ter demitido Silas Rondeau das Minas e Energia, acusado – num fato que depois não foi provado –, pela Polícia Federal, de receber dinheiro do empreiteiro Zuleido Veras, da Gautama. Lula ainda determinou que o PT silenciasse sobre o caso e parasse de discutir no mes para o Ministério das Relações Institucionais. Na véspera, os petistas haviam ventilado o nome do deputado Henrique Fontana (PT-RS) para o cargo. Finalmente, 24 horas depois da conversa de Mares Guia com Dilma, Franklin e Carvalho, o porta-voz da Presidência, Marcelo Baumbach, oficializou a posição de Lula: “O ministro tem a confiança do presidente da mesma forma que tinha antes do episódio. Então, no que diz respeito ao presidente, a situação do ministro não se modificou.”

Todo o esforço para segurar Mares Guia se baseia numa dura realidade política: o governo tem urgência para aprovar no Congresso a prorrogação da CPMF, uma receita de R$ 36 bilhões anuais, imprescindíveis para o sucesso do Programa de Aceleração do Crescimento. E, como responsável pelo atendimento aos parlamentares, Mares Guia tem o mapa das reivindicações dos políticos.

O governo sabe que eles aproveitam qualquer momento de vacilo ou de incerteza para exigir cotas ainda mais salgadas no que tange à liberação de emendas ou nomeação de apadrinhados. Até agora, o recado mais contundente nesse sentido partiu do PMDB. No mesmo dia em que o porta- voz avisou que Mares Guia tem o apoio de Lula, os senadores do partido se aliaram à oposição para derrubar a medida provisória que instituiu a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, criada especialmente para o economista Mangabeira Unger. Na prática isso significa que o PMDB demitiu um ministro de Lula simplesmente porque seu cargo deixou de existir (leia quadro à pág. 34). Na mesma reunião em que os senadores do partido decidiram derrubar a MP de Mangabeira, ficou acertado um pedido de isonomia: ou Silas Rondeau volta ao governo, ou Mares Guia tem de sair.

Esse é o tamanho da encrenca causada pelo Mensalão Mineiro: com o ministro no Planalto, o PMDB se assanha, com sua cabeça a prêmio, e o PT que fica ouriçado. Em ambos os casos, Dilma e outros ministros têm de trabalhar duro para manter a folgada maioria no Congresso. Se nesse momento Lula avaliou que o menor custo político se dá com Mares Guia no governo, a questão que se coloca agora é sobre o que acontecerá quando o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, apresentar ao Supremo Tribunal Federal sua denúncia no processo do Mensalão Mineiro. Na quarta-feira 27, ele disse ao jornal Folha de S. Paulo que “são muito boas as provas” produzidas pela Polícia Federal para construir o inquérito. Não quis, contudo, adiantar se vai indiciar Mares Guia. “Tudo o que disserem sobre o que vou fazer ou não fazer, neste momento, é ilação”, afirmou.

De sua parte, o ministro corre atualmente o risco de vir a descobrir que uma eventual decisão favorável do procurador e uma injeção de sangue novo do governo podem ser insuficientes. A partir do fio do Mensalão, as investigações da Polícia Federal mostram que o caso do ministro é de transfusão. Walfrido dos Mares Guia foi sócio de uma empresa envolvida na chamada Máfia dos Vampiros na Samos Participações, empresa holding que, segundo ele, cuida dos negócios da família, mas que foi utilizada na conexão mineira para quitar uma dívida com o publicitário Marcos Valério.

As conexões do ministro com os vampiros são profundas e complexas. ISTOÉ teve acesso a 450 páginas dos autos principais do inquérito da Operação Vampiro, o de número 04.390/2004, que corre na Justiça Federal em Brasília. Nele se relata que uma das empresas do ministro, a Biobrás, fez parte de um dos braços da Máfia dos Vampiros, apelidada de Máfia da Insulina, o grupo que tentou criar no Brasil o monopólio do hormônio usado para o controle da diabete. O inquérito revela também que uma das peças centrais do esquema, o empresário Jaisler Jabour, trabalhou como lobista e “associado” do ministro.

Num organograma destinado a explicar o funcionamento e as relações entre as diversas pessoas investigadas, a Polícia Federal mostra a relevância que diversas pessoas ligadas a Mares Guia tinham na estrutura do que ela chama de “organização criminosa”. O irmão dele, Marcos Luiz dos Mares Guia, o cunhado de Walfrido, Guilherme Emrich, e o ex-sócio do ministro, Sérgio Krishnamurt Noschang, foram incluídos como cabeças da na época de Máfia dos Vampiros. Desde o governo Collor até o governo Lula, o esquema que envolvia essas pessoas vinha pagando propinas a funcionários do Ministério da Saúde para fraudar as licitações e vender medicamentos superfaturados. Dois lobistas foram apontados como cabeças da estrutura, Eduardo Pedrosa e Jaisler Jabour.

Nos últimos três anos, a PF evoluiu com as investigações sem precisar fazer alarde. Cruzou documentos apreendidos, ouviu dezenas de testemunhas, dentro e fora do governo, e apurou as conexões. Ao longo do ano passado, quando todas as atenções estavam voltadas para a campanha eleitoral, os policiais descobriram um negócio paralelo e tão grande quanto o de hemoderivados – a venda de insulina para o governo, intermediada pelo mesmo Jabour.

Partiu dele a iniciativa de procurar a Biobrás. A eleição do Mensalão Mineiro já tinha acabado quando Jabour fechou um “contrato de assessoria” com a empresa de Mares Guia. Segundo a PF, por mais de três anos, entre 1999 e 2002, ele representou oficialmente a Biobrás dentro do Ministério da Saúde nos acertos para a venda de insulina. Para isso, sempre de acordo com o inquérito, a Biobrás pagava a Jabour 2% de comissão sobre todos os negócios fechados com o governo. As comissões, por sua vez, eram depositadas numa conta da empresa Ítaca, de Jabour.

Até aí, a parte que cabe a Mares Guia estava limitada a um negócio com outra empresa privada, essa, sim com conexões perigosas no Ministério da Saúde. Ocorre que, no ano passado, a PF encontrou uma testemunhachave, Francisco Carlos de Freitas. Ele trabalhou por 24 anos na Biobrás, onde chegou a diretor-executivo e sócio da empresa, por concessão da família Mares Guia. Em dois depoimentos à polícia, em março e abril de 2006, Freitas revelou alguns negócios da Biobrás que permitiram à PF abrir uma investigação de suspeita de superfaturamento, licitação dirigida e aditivos de contratos ilegais. Freitas admitiu que os “aditivos” de contratos com o Ministério da Saúde eram “favoráveis” à Biobrás, pois não passavam por nova concorrência. Uma auditoria do próprio Ministério, anexada ao inquérito, constatou que num desses aditivos o governo comprou 900 mil frascos de insulina, mas a Biobrás só entregou, segundo a auditoria, 775 mil. Freitas admitiu a discrepância no depoimento. Segundo Freitas, Jabour foi o intermediário desses negócios suspeitos.

O caso mais grave, segundo a PF, foi a construção de um monopólio da insulina no Brasil. A Biobrás era a única indústria nacional de insulina. Foi fundada em Montes Claros em 1971 e depois passou a ser administrada pela família Mares Guia. No final do governo Fernando Henrique, era a principal fornecedora de insulina para o governo. Concorria diretamente com a americana Eli Lilly e a dinamarquesa Novo Nordisk. Segundo justificou Freitas à PF, a empresa começou a sofrer ataque especulativo da Nordisk. Os dinamarqueses estariam praticando dumping nas concorrências do governo, colocando preços inferiores aos custos de fabricação. A Biobrás então se sentiu ameaçada de perder licitações.

Foi então que Jabour entrou no circuito para intermediar a venda da empresa dos Mares Guia para os dinamarqueses. A aquisição se deu por etapas. Primeiro, num caso curioso ocorrido em 1999, a Biobrás simplesmente não entregou o envelope de uma concorrência, deixando a Nordisk ganhar sozinha, com preço superior. A aquisição da Biobrás começou em outubro de 2000 e só terminou em 31 de janeiro de 2002, sob a intermediação de Jabour. O delegado registra no depoimento de Freitas: “É bastante grave a consignação feita pelo declarante de que Jaisler atuava a favor da Biobrás e da Novo Nordisk ao mesmo tempo.” A partir daí, com a fusão das duas concorrentes, o preço médio do frasco de insulina para o governo subiu de R$ 7,74, em 2001, para R$ 14,82, em 2002.

O que aconteceu daí para a frente – a forma como o ministro consolidou a venda da sua Biobrás para os dinamarqueses – é intrigante. Segundo os documentos da PF, em 3 de janeiro de 2002, a Novo Nordisk e outra empresa do grupo dinamarquês, a NN Holding do Brasil, fundaram a Samos Participações. O representante dos dinamarqueses na Samos foi Sérgio Krishnamurt Noschang, principal executivo da Nordisk para a América Latina. Mais tarde ele seria preso na Operação Vampiro. A polícia ainda descobriu que o capital inicial dessa empresa era de R$ 15,9 milhões. Dias depois, Walfrido dos Mares Guia entrou como sócio da Samos. Mais três meses e, em 27 de março, as duas empresas do grupo Nordisk se retiraram do contrato social, deixando lá apenas Walfrido, com 99%, e sua esposa, Sheila Emrich, com 1%.

Ou seja, os dinamarqueses ficaram com a Biobrás, criando assim o monopólio da insulina. A família Mares Guia, por sua vez, ficou com a Samos (que hoje administra seus negócios familiares) e fundou outra empresa do ramo de biotecnologia, a Biomm. Francisco Freitas, que foi sócio e principal executivo da Biobrás, liderou o grupo de funcionários que se transferiram para a Biomm. A ISTOÉ, Freitas confirmou o teor de seus dois depoimentos à PF. Mas se esquivou de fazer novas revelações. “Não vou falar sobre esse assunto”, disse. Os delegados que ouviram Freitas escreveram ao final de um dos depoimentos: “Com o desaparecimento da Biobrás, evidenciou-se o monopólio na venda de insulina por parte da Novo Nordisk.” O caso também foi investigado pela Controladoria Geral da União, CGU. Em 2005, a CGU concluiu que a operação incorreu “na prática de oligopólio” e recomendou ao Ministério da Saúde que fizesse a rescisão do contrato.

O mais representativo de todo o caso de Mares Guia não é a atitude do ministro no que se refere a Lula e ao governo, mas o papel do presidente em relação a ele. Afinal, Mares Guia pode vir a ser denunciado pelo procurador por conta do Mensalão Mineiro de 1998 e enfrenta uma nova investigação da Polícia Federal em função dos negócios que sua empresa fez com o Ministério da Saúde entre 1999 e 2002. Em ambos os casos, eram governos do PSDB, que não deu uma palavra em defesa do ministro. Ou seja, foi com os tucanos que Walfrido fez a conta pela qual está sendo cobrado. E quem se apresentou até agora para pagá-la foi Lula.