Revi coisas nessa passagem de ano. A maioria das pessoas revê atitudes, comportamentos, promessas, compromissos. Eu revi filmes, reli trechos de livros e ouvi novamente discos que me acompanham. Nenhuma melancolia, nenhuma hipocondria, nenhum saudosismo. Nada disso. Com os olhos atentos ao futuro entreguei-me a sonhar, e é a partir dos meus sonhos, digamos sonhos de autoajuda, que compartilho com o leitor uma receita para a construção de um tempo melhor. Não imaginem que o faço na perspectiva de “cada um por si”, cada um encarnando o seu próprio Robinson Crusoé isolado em sua ilha de contentamento. A minha perspectiva é global: é a de um País e de um mundo mais delicados.

Sonhos são diferentes de projetos de início de ano. Todo projeto implica preocupação em se fazê-lo realizar, sonhos não – é maravilhoso quando eles se concretizam, mas não há preocupação, até porque, se o projeto depende da minha perseverança, a dança do onírico independe dela: no campo dos sonhos, quem se preocupa só se preocupa – não sonha. Jacques Lacan – sim, eu reli Jacques Lacan – expõe melhor que Sigmund Freud a incompletude entre desejo e realização do desejo. É por isso que é imprescindível sonhar sempre – e sempre reler Lacan. Dessa forma fui me entregando a ver, ouvir e ler, e peço que algumas vezes ao longo de 2014 vejamos, por exemplo, pelo menos partes de “Cantando na Chuva”. Sugiro aquela em que Debbie Reynolds, Gene Kelly e Donald O’Connor, após uma produtiva noite insone (revendo coisas), amanhecem cantando “Good Morning”. Inclui a minha fórmula de autoajuda rever trechos de “Eu Quero Viver”, a vida real de Barbara Graham na interpretação de Susan Hayward. Podemos sonhar que a partir desse filme ficaria banida do mundo a pena de morte, mas dos dois lados, frise-se que dos dois lados: carrasco não excuta ninguém, bandido também não mata mais ninguém.

Na semana passada o IBGE revelou que “41% dos brasileiros acreditam” que “o mundo seria um lugar melhor se as mulheres fossem maioria na política”. Na verdade, se todas elas possuíssem, em suas áreas, o talento das intérpretes da música brasileira, é certo que tudo ficaria cem por cento. Fim de ano, início de ano, e eu ouvindo novamente Dora Vergueiro, Teresa Cristina e Roberta Sá. Elas fazem bem para a alma. Busquei na minha coleção “Samba Valente”, busquei “Dora Vergueiro”, busquei “O Mundo É Meu Lugar”, busquei “Melhor Assim”, busquei “Uma Noite Noel Rosa”, busquei “Pra Se Ter Alegria” – obras consagradas das três. E sonhei sonho bom: que maravilha se Dora, Teresa e Roberta interpretassem juntas, para o Brasil ouvir em 2014, o samba “Quarta-feira”, do imortal Ismael Silva e Hermínio Bello de Carvalho, ou, então, “Sábado à Noite”, de Maurício Tapajós e Paulo Cesar Pinheiro. Daí busquei “Maria Gadú”, no qual se mescla alegremente Noel Rosa com Amy Winehouse, e busquei a “Sinfonia para Brasília” composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes – os políticos deveriam escutá-la todas as noites. Ouvi também (presente do historiador amador Sidney Perez) uma rara gravação do antigo “Repórter Esso”, anunciando em dezembro de 1968 a instauração do truculento AI-5, e sonhei que nunca mais o nosso País viverá tal brutalidade. Finalmente, reli da primeira à última página de “Conceitos e Pensamentos de Machado de Assis”, edição de 1925 da Editora Monteiro Lobato. Machado todos os meses, Machado 2014 inteiro. O ano está engrenando, eis a minha breve receita de delicadeza.
E sem nenhum efeito colateral.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ


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