Uma cena forte e emotiva incandesceu ainda mais o debate sobre o destino de Elián González. Sentado numa cama, o menino cubano fez um apelo ao pai para ficar nos Estados Unidos. “Pai, não quero ir para Cuba. Se quiser, fique aqui”, disse ele com voz enfática. O vídeo, transmitido na quinta-feira 13 por todos os canais americanos, foi realizado pelos parentes de Elián, que se recusam a entregar o garoto à Justiça americana. Indignado, o pai, Juan Miguel, advertiu que não irá mais permitir a difusão das imagens. “Só Juan Miguel González, na qualidade de pai, fala em nome de seu filho”, afirmou o advogado de Juan Miguel, Greg Craig. A secretária da Justiça dos EUA, Janet Reno, garantiu que ele não será retirado à força. A intenção de Reno é fazer com que Elián se encontre com o pai em Washington. Porém, os tios conseguiram uma determinação judicial temporária para ficar com a criança por mais tempo.

Em Cuba, o cenário é outro. Em várias casas pode-se ver a fotografia de um amigo de classe de Elián sentado num banco escolar ao lado de outro, vazio. “Devolvam o Elián ao seu banco escolar”, diz a legenda. O pequeno é Hansel, que ainda não completou sete anos de idade e já se tornou uma celebridade nacional em Cuba. Hansel está sentindo os reflexos do drama do colega em sua casa num humilde bairro de Cárdenas, cidade a 130 quilômetros de Havana. O até então tranquilo dia-a-dia de Hansel virou de pernas para o ar depois que sua foto correu por Cuba. O próprio Fidel Castro fez questão de conhecê-lo quando visitou, em dezembro, a Escola Municipal Marcelo Salado, onde ele e Elián estudam. “Mamãe, ele é de verdade!”, espantou-se Hansel depois de tocar várias vezes o comandante-em-chefe. “Elián vai voltar”, diz o menino enquanto assiste pela tevê a uma propaganda governamental na qual ele e seus colegas de escola são os protagonistas. Mas a súbita fama do garoto, no entanto, não está agradando muito à sua mãe, a professora Nancy Pedroso, que, apesar da formação, trabalha numa lanchonete em Cárdenas. “Agora, muitas pessoas querem falar com ele, o procuram na escola, querem saber o que ele sente e sei lá mais o quê. O menino perdeu um pouco do sossego e é apenas uma criança”, desabafa Nancy, que considera Hansel bem mais “levado” do que Elián.

O assédio de curiosos pode incomodar Nancy, mas não lhe tira o bom humor. O mesmo não se pode dizer dos vizinhos de Elián, que moram em outro bairro pobre de Cárdenas. Desde que o pai de Elián, Juan Miguel, partiu para os Estados Unidos há uma semana, os moradores da rua Cossio se fecharam em copas. Quando a reportagem de ISTOÉ chega ao local, encontra todas as casas fechadas e as poucas pessoas que estão nas janelas nos recebem com muita desconfiança, quase com hostilidade. Uma vizinha concorda em falar, mas apenas para elogiar as novelas brasileiras (em Cuba agora está passando O rei do gado): “Eu gosto de todas as novelas brasileiras, e esta então, que fala dos sem-terra, é formidável”, diz. A casa de Elián e a de seus avós se destacam das demais por serem de alvenaria, em meio a várias construções de madeira. Estão repletas de fotos de Elián com palavras de ordem (“Elián: voltarás ao seio de tua família, de teu povo, de tua pátria, criança-símbolo, criança heroína!”, diz uma delas). As casas dos familiares de Elián também estão fechadas. Somos informados de que eles – os avós e o tio do menino – estavam em Havana esperando a volta de Juan Miguel. Meia hora depois, a porta da casa dos avós se abre e por ela saem duas pessoas. Surpreendido de bermuda e sem camisa, Tonito, tio de Elián, se recusa a falar ou a posar para fotos. “Não vamos transformar Elián numa peça de propaganda. Ele é apenas uma criança. Isso que estão fazendo é anti-humano”, dispara Fulgêncio Suárez, o senhor que estava ao lado de Tonito.

Antes de encontrar o local onde mora o pai de Elián, a reportagem de ISTOÉ tentou falar com alguma autoridade municipal de Cárdenas para obter mais informações. Foi um esforço completamente em vão. Na escola Marcelo Selado, no centro da cidade, fomos informados de que os professores estão numa semana de avaliações e que por isso não há aulas. Pedimos para fotografar a sala de aula de Elián, mesmo sem os alunos. “Não pode. Só a diretora pode autorizar. E ela está ocupada na sede local do Ministério da Educação”, informa uma funcionária. Pedimos para ver a sala de aula. “Só com ordem da diretora”, sentencia. Na sede do Ministério da Educação nos dizem que a diretora, Carmen Hernández, “está em reunião”. Nos sugerem ir à sede municipal do Partido Comunista para obter uma autorização para visitar a escola. Novamente, ninguém pode nos atender. Todos estão “em reunião”. Tentamos recorrer ao prefeito Roberto Bernal Villegas. Claro, ele está em reunião, “voltem depois”. Algum funcionário de segundo escalão? Todos em reunião. A compulsão por reuniões, aliás, é uma mania tão renitente das organizações de esquerda que ainda na década de 20 o poeta russo Vladimir Maiakovsky escreveu um poema desancando o espírito de “reunionismo”. O poeta se suicidou, mas o hábito se consolidou.

Controle sobre o caso – Mais do que a fissura por reuniões dos burocratas, é a continuidade da onipresença do Partido Comunista na vida dos cubanos, apesar da relativa abertura econômica da ilha, que faz o cotidiano do alegre povo desse belo país se parecer com um labirinto kafkiano. O caso Elián é exemplar. O episódio trouxe simpatias quase unânimes para a posição cubana no cenário internacional, mas internamente o regime se mostra incapaz de relaxar os mecanismos de controle. O Estado insiste em manter um domínio absoluto sobre os eventos e as pessoas envolvidas direta ou indiretamente no caso. Nada, nem uma mera informação banal como o endereço dos familiares de Elián, pode ser conseguido sem o beneplácito de um poderoso, que raras vezes é encontrado. Na terça-feira 11, na derradeira tentativa de obter uma declaração oficial, a reportagem de ISTOÉ foi informada por uma funcionária do partido, que se identificou apenas como Marina, de que as autoridades municipais não podiam dar nenhuma informação sem que tivessem uma prévia autorização do partido em Havana. “Ninguém entrevistou líderes regionais sobre o caso Elián. As declarações oficiais já foram feitas pelas autoridades centrais, por Fidel, pelo chanceler Felipe Pérez Rodríguez”, disse ela. E a mentalidade policial está tão impregnada na burocracia que se manifesta mesmo nos mais baixos escalões. Enquanto conversávamos com a funcionária, a atendente apressou-se em “denunciar” à superiora que o fotógrafo Alan Rodrigues estava tentando tirar fotos da sede do partido. Sem autorização, esse gesto absolutamente corriqueiro de uma reportagem é visto como se fosse um delito. Esse espírito de caserna, aliás, pode ser sintetizado por uma frase inscrita na fachada do Partido Comunista em Cárdenas: “O partido existe seguro de sua razão, como a alma visível de Cuba.”