É ele quem nos lê e nos explica. Shakespeare não cabe em nenhuma análise crítica, inclui todas elas. Os homens passaram a ser diferentes depois de Shakespeare, pois até hoje sentimos e pensamos segundo os modelos que ele criou. Sem Shakespeare, o mundo em que vivemos seria outro, mais simples, mas também menos interessante. São as idéias que Harold Bloom defende em Shakespeare – a invenção do humano (Objetiva, 896 págs., R$ 64,90), ambicioso ensaio crítico, fruto de toda uma vida de estudo e ensino da obra do dramaturgo inglês.

Bloom não chega a justificar de forma conclusiva suas idéias, quase aforismas. Prefere partir logo para uma brilhante análise cronológica, peça a peça, dos personagens shakespearianos, conciliando doses cavalares de paixão e erudição. Seu elogio é tão entusiasmado e enfático que é difícil imaginar exemplo mais adequado do que Bernard Shaw chamou de “bardolatria”. Bardólatra assumido, Bloom vê Shakespeare como nosso grande demiurgo, e sua obra como a bíblia de uma religião secular, da qual nunca se pode ser suficientemente devoto. Viola, portanto, um preceito de Samuel Johnson – autor de um estudo clássico sobre o bardo –, que condenava a “veneração supersticiosa” de um crítico pelo seu objeto de análise.

Nem por isso A invenção do humano deixa de ser a magnum opus do ensaísta americano, que já a prenunciara nos capítulos dedicados a Shakespeare em dois outros livros, Abaixo as verdades sagradas (1987) e O cânone ocidental (1994), nos quais já deixara clara a sua predileção por dois personagens, o angustiado Hamlet e o pragmático Falstaff – de quem, de certa forma, todos nós seríamos herdeiros. Mas, quanto à tese da “invenção do humano”, é claro que, se for entendida literalmente – como parece defender Bloom –, ela não resiste a uma análise mais profunda.

Outros artistas, antes e depois de Shakespeare, ajudaram a inventar e reinventar continuamente a natureza humana, de Homero e Platão a Machado de Assis e James Joyce. Só para ficar no mundo das letras, pois é certo que os gênios da música e das artes plásticas, como Mozart e Leonardo Da Vinci, também deram sua contribuição para a conformação do modo como sentimos, pensamos e vivemos hoje. Como também é certo que a obra de cada um desses artistas foi, embora não exclusivamente, fruto de um contexto ou de movimentos históricos renovadores, e não resultado de uma inspiração divina.


O que Shakespeare fez foi introduzir uma terceira dimensão – a dimensão da interioridade – na representação até então “plana” dos personagens, dotando-os de personalidade e da capacidade de transformação, isto é, tornando-os “indivíduos”, com vozes consistentes. E, uma vez plantada no terreno da literatura, a semente da “vida interior” não parou de crescer durante os últimos quatro séculos. Essa inovação, aliada ao seu conhecimento profundo da alma e do coração humanos, fez com que o dramaturgo de Stratford-upon-Avon escrevesse peças que desafiam o tempo.

Seus personagens funcionam muitas vezes como modelos arquetípicos: Iago como modelo da dissimulação, Otelo como modelo do ciúme, e assim por diante. É verdade que Hamlet nos ensina a sermos céticos em relação às palavras e Falstaff a rirmos de nós mesmos. A Cleópatra de Shakespeare, por sua vez, nos mostra como é impossível separar o amor da representação do amor e que a sinceridade é fator descartável no jogo de eros. E em todas as suas peças Shakespeare revela, enfim, como muitas vezes fazemos o papel de bobos do tempo, do amor, da fortuna, ou de nós mesmos. Mas afirmar que a obra de Shakespeare “contém” Freud, Nietzsche, etc., ou que Shakespeare inventou nossa linguagem, nossa mitologia, nossa psicologia e até mesmo nossa sexualidade é ir longe demais na sua exegese.

Na afirmação dogmática de que Shakespeare é um gênio que paira acima da história reside outro ponto fraco de um livro quase-perfeito. A ótica de Bloom é conservadora a ponto de rejeitar, em primeiro lugar, qualquer tentativa de historicizá-lo, ou seja, transformá-lo em fruto do contexto social e histórico do Renascimento inglês. Para Bloom, Shakespeare combina com verdades universais, não com particulares históricos. Dificilmente ele aprovaria, portanto, o que se tem feito com o autor nos palcos brasileiros, como a premiada versão circo mambembe de Romeu e Julieta, de Gabriel Villela, a acrobática montagem de A tempestade, de Caco Coelho, ou ainda experimentos irreverentes do grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões como ppp@WllmSkkspr.br.

Cinema – Quanto às periódicas adaptações para o cinema, certamente Bloom está mais próximo dos clássicos de Orson Welles, Laurence Olivier ou mesmo Ingmar Bergman do que das adaptações de Kenneth Branagh e do recente Shakespeare apaixonado, que infantiliza e deforma o bardo (representado como um pateta) para torná-lo mais palatável (e vendável). Mas como um ensaio crítico à moda antiga, acessível ao leitor comum, A invenção do humano é obra fundamental, pelas iluminadas intuições de Bloom sobre as motivações e a psicologia dos personagens shakespearianos. No entanto, carecem de maior embasamento teórico. Ainda assim é inevitável concordar com Harold Bloom quando ele teme que, na cultura da realidade virtual, os personagens de Shakespeare deixem de ser paradigmas do humano, ou quando lamenta que hoje nas universidades ele seja nivelado a Madonna ou a seriados de televisão.