A vida de um dos maiores pintores brasileiros, o fluminense Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), guardadas as devidas proporções, foi semelhante a de Vincent van Gogh, um dos gênios da arte ocidental. Seu óleo Vaso com flores, pintado em 1946, é uma das obras brasileiras mais caras já comercializadas até hoje. O martelo bateu em US$ 759 mil a favor do deputado tucano Ronaldo Cezar Coelho, no leilão organizado, ano passado, pela Christie’s, em Nova York. Mas, assim como Van Gogh, Guignard terminou seus dias na miséria. Se lhe sobrava talento nos pincéis, faltava na administração de seus recursos. Sua dedicação e rigor técnico, porém, pontuados por uma aguda melancolia, poderão ser apreciados na sua mais importante exposição já organizada no Brasil. O humanismo lírico de Guignard, que custou R$ 1 milhão, a partir da quarta-feira 5 exibirá 140 óleos do pintor no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA). Em 12 de junho, a mostra chega ao Museu de Arte de São Paulo (Masp).
O MNBA dará a Guignard o mesmo destaque e tratamento concedidos a artistas internacionais, como Claude Monet e Salvador Dalí. Trará um evento paralelo, o tributo ao Salão de 31, um marco do modernismo do qual o artista participou com 26 obras. Também incluirá uma sala na qual serão desenvolvidas atividades para o público infantil, além de seminários e concertos de música. De acordo com Jean Boghici, que foi amigo do pintor e divide a curadoria com Pedro Xexeo, do MNBA, e Luiz Marques, do Masp, a cronologia da exposição quer proporcionar uma visão global da obra de Guignard, com todas as suas fases representadas.

Boghici, que afirma ser Guignard um dos artistas brasileiros mais falsificados dos últimos tempos – talvez pela aparente simplicidade de seus quadros –, lembra que o amigo tinha um temperamento extremamente alegre, até infantil. “Às vezes chegava a ser um palhaço”, recorda, contando o episódio em que arrastou uma mesa para aproximar a artista e fumante inveterada Lygia Clark de um cinzeiro, em vez de apenas lhe entregar o objeto.

Contraditoriamente, a vida cercada de tragédias não deu a ele muitos motivos para ser feliz. Devido ao lábio leporino, teve uma amamentação dificultosa, com consequente infância desnutrida e posterior tom fanhoso na voz. Em Munique, onde foi estudar na década de 20, apaixonou-se pela estudante de música Anna Doring, com quem se casou três meses depois e foi abandonado em plena lua-de-mel. Sua mãe e única irmã, ambas chamadas Leonor, morreram jovens. Seu pai, que tanto admirava, suicidou-se com um tiro e deixou uma fortuna, dilapidada por seu padrasto, um nobre alemão falido. Mesmo assim, Guignard, neto de franceses pelo lado materno e paterno, mesclou lirismo, humor e fantasia à sua obra.
Um de seus maiores méritos foi saber conciliar as artes clássica e moderna. Sua cor não é singular, mas, segundo os estudiosos pós-impressionistas, respeita e harmoniza os tons locais de suas paisagens e naturezas-mortas. No óleo sobre tela Floresta tropical, de 1938, por exemplo, pela escolha das cores percebe-se a técnica e permanente busca da perfeição. Como nunca foi um intelectual, pintou a realidade ao seu redor, traço que também o levou a ser confundido com os artistas ingênuos. Seu gosto artístico, entretanto, era requintado. Foi um grande admirador do pintor renascentista Sandro Botticelli. Essas características poderão ser fartamente conferidas na mostra que começa com o Retrato de Felicitas Bayer Barreto, um óleo sobre tela datado de 1930. Ela era uma mulher muito bela e de comportamento ousado para a época. Chegou a viver entre os índios e a se casar com um cacique.

Admiradores de Guignard ou iniciantes na sua arte ainda vão se deleitar com uma grande maioria de quadros desconhecidos do grande público. Pertencem a coleções particulares, nunca expostos. Entre eles desponta Glória do artista (1933), de tons oníricos, da coleção de Sérgio Fadel, que emprestou 15 telas para a mostra. Da mesma coleção encontra-se Vaso com flores (1935), um dos vários que pintou e caracterizou seu trabalho ao lado das marinhas e paisagens mineiras das cidades de Ouro Preto e Sabará. Estas e o famoso Vaso com flores arrematado na Christie’s também integram a mostra. A última fase de Guignard, a que ele chama de “paisagens fantásticas”, foi uma das mais apreciadas pelos críticos dos anos 60. “É uma pintura mais solta e transparente”, descreve Jean Boghici.

Em relação à obra total, como analisa o crítico Frederico Morais, autor do catálogo da mostra, num primeiro contato as telas de Guignard podem dar a ilusão de serem modestas. Mas basta um olhar mais atento para que o deslumbramento brote paulatinamente.

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