O golpe que levaria Paulo Maluf ao poder em março de 1985 foi articulado no ano anterior e tinha até senha: fidelidade. Essa era a palavra-chave que os malufistas usavam para cooptar o apoio de militares. Alguns panfletos foram colocados, em agosto de 1984, no QG do Exército, com a palavra fidelidade em destaque. O plano consistia em considerar o candidato do PDS vitorioso no Colégio

Eleitoral, que se reuniria em janeiro de 1985, mesmo que ele recebesse menos votos do que Tancredo Neves: a base era o princípio da fidelidade partidária. Os votos dos dissidentes do PDS seriam anulados. No Planalto, Maluf tinha um partidário entusiasta, o assessor especial do presidente Figueiredo, major da reserva Heitor Aquino. Em 1997, Figueiredo queixou-se do malufismo do seu assessor e o acusou de ter colocado uma escuta em seu gabinete.

Maluf contava com adeptos também nos gabinetes dos ministros do Exército, general Walter Pires, e da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Mattos. O general chegou a fazer um “alerta sobre o perigo da esquerdização do País se a oposição chegasse ao poder”. O brigadeiro deixou clara a preferência por Maluf em discurso feito, em setembro de 1984, na reinauguração do aeroporto de Salvador. O brigadeiro Octávio Moreira Lima, que estava no alto comando da Aeronáutica, afirma que “havia golpistas que apoiavam Maluf, mas eles eram minoria. Os militares já queriam se livrar do desgaste causado pelo envolvimento com a política”.
Opinião semelhante foi a do almirante Maximiano da Fonseca, em depoimento gravado pouco tempo antes de morrer, em 1998. Ele afirmou que houve um conluio entre a área de informações, que pretendia um candidato engajado com o regime, e Maluf. “Sofri o grampeamento telefônico quando ministro da Marinha no governo Figueiredo e já naquela época percebi que os homens do SNI queriam Maluf e não Tancredo, que completaria a redemocratização sem revanchismo.”

O candidato da Aliança Democrática não tinha dúvidas de que era alvo de uma conspiração e por isso atrasou ao máximo o tratamento de saúde, mesmo sentindo dores intestinais. Ele teve encontros reservados com militares (generais Octávio Costa, Reynaldo Mello de Almeida, brigadeiros Deoclécio Siqueira e Octávio Moreira Lima, almirantes Maximiano da Fonseca e Júlio Bierrenbach). Não tinha dúvidas de que um golpe estava em andamento e advertiu: “Não há golpe sem um pretexto capaz de confundir a opinião pública.” O pretexto era a “fidelidade partidária”. Comparou a conspiração com a que houve em 1955, patrocinada pela UDN: “maioria absoluta” para impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Tal como a “maioria absoluta”, a fidelidade partidária não era prevista pela Constituição. Tancredo sabia que Maluf era apoiado pelos que pretendiam garantir uma sobrevida ao regime militar. Mas dois fatos esvaziaram o plano do golpe. No dia 21 de setembro, o ministro Walter Pires, ao iniciar a reunião do alto comando, mostrou uma nota oficial que seria distribuída no final do encontro, com um tom duro. Mas, para decepção do ministro, os generais do alto comando rejeitaram o discurso alarmista e fizeram a opção por uma nota apoiando as regras do jogo. Seguiram a decisão da Marinha e da Aeronáutica. Mas faltava a Justiça Eleitoral. No dia 21 de novembro, o Tribunal Superior Eleitoral derrubou a tese da fidelidade partidária. Nem o PDS nem o PMDB poderiam obrigar seus filiados a votarem em determinado candidato no Colégio Eleitoral. Maluf teve de se conformar com a derrota.

“Sou o bode expiatório de 64”

Paulo Maluf presidente com poderes garantidos por um ato institucional. O golpe foi cogitado pelo ex-governador de São Paulo, em 1984. Só faltava um testemunho, que acabou sendo apresentado no último programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, pelo general Newton Cruz. Ao falar a ISTOÉ, o general confirmou o encontro com Maluf, que tinha a expectativa de chegar ao poder com apoio militar. Newton Cruz insinuou que a proposta poderia incluir riscos para Tancredo Neves: “O ato de força que Maluf pretendia certamente envolveria risco para Tancredo.” O general decidiu falar do golpe para se defender de acusações de que teria conspirado contra Tancredo. No livro Cassado e caçado por defender a Pátria, de sua autoria, ele contesta matéria publicada por ISTOÉ em 1992, assinada pelos jornalista Hélio Contreiras e Bob Fernandes, em que seu nome está entre os conspiradores. A lista dos que procuravam impedir a posse de Tancredo foi mostrada a ISTOÉ, em dezembro de 1991, por um coronel do Exército.
ISTOÉ – Onde foi o encontro?
Newton Cruz – Na residência oficial do comandante Militar do Planalto, em Brasília. O próprio Maluf teve a iniciativa de ir a minha casa. Eu o recebi e ele procurou me atrair para um plano político de seu interesse.
ISTOÉ – Mas era um plano golpista?
Cruz – Sim, ele disse que o Tancredo estava muito doente e talvez morresse em curto prazo. Se isso acontecesse, os compromissos assumidos por ele eram de tal natureza que sua morte poderia levar o País a uma situação caótica. Maluf seria um patife se negasse isso.
ISTOÉ – As Forças Armadas admitiam a possibilidade de um golpe? Cruz – Não havia clima para golpe. Havia um compromisso do presidente Figueiredo de cumprir a Constituição.
ISTOÉ – Ele gostava de Maluf?
Cruz – Fazia restrições.
ISTOÉ – O sr. apoiaria um golpe para fazer Andreazza presidente? Cruz – Eu nunca conspirei. Nem em 1964. Participei da revolução, mas nunca conspirei.
ISTOÉ – Qual a razão do título de seu livro?
Cruz – Fui cassado em 1985, quando não fui promovido e fui desligado do Exército. Depois passei a ser caçado. Primeiro, pelo processo sobre o assassinato do jornalista e colaborador do SNI Alexandre Baumgarten. Depois, com esse novo IPM do Riocentro. É uma palhaçada. Com base nisso fui denunciado. Sou o bode expiatório da Revolução de 1964.
ISTOÉ – Por que o sr. não evitou o Riocentro?
Cruz – Tive a informação do coronel Ari Pereira de Carvalho, menos de uma hora antes do atentado, de que alguns descontentes do DOI pretendiam colocar uma bomba nas proximidades do Riocentro. ISTOÉ – E o que foi feito para impedir a ação dos dissidentes? Cruz – O coronel Freddie Perdigão deu uma instrução no sentido de que a bomba dos dissidentes do DOI, de fabricação caseira, uma bombinha vagabunda, fosse colocada em área afastada.