OUSADIA O Vaticano criticou essa publicidade da Benetton, em 1992. Ela foi retirada de outdoors na Itália e na França. A grife temeu o desgaste de sua imagem

A atriz americana Brooke Shields tinha 27 anos quando a tradicional Christie’s de Nova York realizou um dos mais polêmicos leilões de sua história. O mundo estava às vésperas do ano 2000. Embora a atriz tivesse lutado na Justiça para retirar desse leilão uma foto dela que fora feita quando tinha dez anos e na qual aparece nua numa banheira e com ares de ninfeta, a sua imagem estava lá, à disposição de quem tivesse dinheiro, na verdade muito dinheiro, para arrematá-la. Foi vendida por US$ 151 mil. Esse caso, até por envolver a fama de quem envolvia, trouxe à tona a discussão sobre a tênue fronteira entre a fotografia como arte e a fotografia como pornografia, como sensacionalismo a serviço de interesses publicitários ou mero atalho arrivista seguido por alguns fotógrafos. Brooke Shields, que ficou famosa pelo filme A lagoa azul, queria de volta a imagem registrada pelo americano Garry Gross para um ensaio intitulado The Woman in a child (A mulher numa criança). Ela perdeu a briga porque os juízes da Suprema Corte dos EUA julgaram não existir apelo erótico ou invasão de intimidade no referido retrato. Essa imagem, que correu o mundo, é apenas uma entre as tantas e polêmicas fotos que estão reunidas na exposição Controvérsias, uma história legal e ética da fotografia, no Museu d’Elysée, na cidade suíça de Lausanne. A mostra se compõe de retratos históricos, alguns proibidos pela Justiça, alguns execrados pelo público, outros que serviram de prova crucial em julgamentos – criando até jurisprudência sobre o direito autoral da imagem.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

MORTE Em 1985 os bombeiros não conseguiram resgatar a menina Omayra Sanchez. O fotógrafo Frank Fournier registrou durante três dias a sua terrível agonia

Há cenas desumanas o bastante para chocar o mundo e abalar governos, como o retrato que mostra oficiais americanos torturando prisioneiros em Abu Ghraib, no Iraque, em 2004 – a divulgação do registro anônimo pela rede CBS abalou a credibilidade do presidente dos EUA, George W. Bush. A foto, provavelmente, foi feita por um desvairado e cruel soldado americano para mostrar a superioridade de seu país. Foi parar na CBS. Nas mãos da imprensa a sua função mudou: passou a ser uma arma ética para denunciar a barbárie. Uma das fotografias que mais despertam atenção na atual exposição, no entanto, remonta a 1985. Trata-se da imagem da menina colombiana Omayra Sanchez, que ficou presa a escombros durante três dias após a erupção do vulcão Nevado del Ruiz. Morreu sem que os bombeiros conseguissem resgatá-la. A sua agonia foi registrada pelas lentes de Frank Fournier.

Às vezes condenada, às vezes absolvida, o fato é que a fotografia é colocada freqüentemente no banco dos réus – mas também, em contrapartida, levou muita gente a sentar nele. É o caso, por exemplo do consagrado pintor francês Gustave Courbet. Em 1871, ele foi preso e acusado de integrar um grupo de subversivos que jogara ao chão a estátua de Vendôme, símbolo do império francês. A única prova apresentada contra Courbet foi justamente uma foto de Bruno Braquehais que registra o momento em que curiosos observam a estátua caída – e Courbet é justamente um desses curiosos que aparecem na foto. Num outro processo judicial, nos EUA e uma década depois, a fotografia ganhou por decisão da Corte o status de obra de arte – e os fotógrafos passaram a ter direitos autorais sobre a imagem. A conquista foi resultado da ação movida por Napoleón Sarony contra uma empresa que usou numa propaganda, sem sua prévia autorização, um retrato que ele fizera do escritor irlandês Oscar Wilde.

NINFETA Brooke Shields foi fotografada por Garry Gross aos dez anos. Contra sua vontade, essa foto foi leiloada por US$ 151 mil quase duas décadas depois

Em 1992, também a publicidade protagonizou uma polêmica numa campanha criada pelo italiano Oliviero Toscani para a marca Benetton. A imagem de uma freira e de um padre se beijando na boca foi duramente criticada pelo Vaticano e acabou sendo retirada da televisão e de outdoors da França e da Itália – a própria Benetton optou por não correr o risco de um eventual desgaste de sua imagem. Ainda na galeria das obras consideradas sacrílegas pelos católicos está Piss-Christ, de Andrés Serrano, que enquadra um crucifixo mergulhado na urina do artista – na verdade, pouco há de sacrilégio. O que se vê é quanto a sua criação é de péssimo gosto e ele, alguém disposto a criar barulho apenas para se promover. Isso, é claro, sempre recai no campo da subjetividade, porque qualquer artista tem direito à liberdade de expressão. Para o curador da exposição agora em cartaz na Suíça, Daniel Girardin, o seu objetivo não é provocar e reviver antigas polêmicas, mas deixar claro que a tolerância da sociedade se transforma com o passar do tempo. A própria mostra, que levou quatro anos para ser organizada e reúne fotos de diversos países, é prova disso.