O grupo guerrilheiro colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN) é provavelmente o último suspiro do sonho do líder revolucionário Ernesto Che Guevara de criar muitos Vietnãs na América Latina. Fundada em 1964, a organização ganhou notoriedade dois anos depois, quando o Exército matou um de seus militantes, o padre Camilo Torres. Embora hoje a guerrilha mais poderosa do país vizinho seja as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o ELN é um grupo importante, que atua basicamente nas áreas de petróleo. O colapso do comunismo e a globalização não foram suficientes para abalar as velhas convicções dos “elenistas”, que se definem como “marxistas-cristãos”. Em entrevista exclusiva a ISTOÉ, o comandante Domingos Bernardes, da Frente Internacional do ELN, classifica as negociações entre o governo e as Farc de “elitistas”, justifica os sequestros como arma política e diz que o Mercosul é uma modalidade neoliberal de associação, destinada a explorar os oprimidos.

ISTOÉ – A guerrilha colombiana é acusada de agir em associação com o narcotráfico e de usar o sequestro e a extorsão como forma de financiamento para suas atividades.

Domingo Bernardes – O povo é o dono das riquezas do país. E os ricos roubaram e privatizaram o patrimônio do povo. Niguém fica rico trabalhando e quem está rico roubou. Então, uma revolução tem que recuperar essa riqueza. Nós não sequestramos, nós retemos as pessoas, afinal, estamos numa guerra. Nós também não roubamos ninguém; nós recuperamos o que é do povo e o devolvemos a ele. Temos uma fonte inesgotável de recursos, as multinacionais. Então, forçamos eles a devolver uma parte do que roubam. Claro, ninguém faz isso numa boa; então, pegamos uma arma, pegamos, o superintendente, damos umas “aulas” sobre o que eles roubaram e obrigamos as empresas a pagar.

ISTOÉ – E o narcotráfico?

Bernardes
– O narcotráfico é uma multinacional como muitas que aparecem a cada semana. Com a demanda de narcóticos nos países ricos, descobriu-se que dava para ganhar dinheiro com isso. Temos testemunhos de camponeses de que pastores, corpos da paz americanos, evangelizadores estrangeiros vieram na Colômbia, anos atrás, incentivando esses camponeses a plantarem sementes de maconha, depois folhas de coca, dizendo que nelas estava o futuro. Os indígenas colombianos, inclusive, não estavam acostumados ao plantio de coca, como acontece na Bolívia e no Peru. Sabemos que às vezes não se pode prescindir desses negócios; há guerrilheiros que fazem negócios de coca por armas, porque precisam de armas. Mas não é o nosso objetivo. O narcotraficante é de direita, faz parte das multinacionais, é nosso inimigo.

ISTOÉ – O governo do presidente Andrés Pastrana iniciou um processo de negociações de paz com as Farc. Por que vocês do ELN foram excluídos?


Bernardes
– Em primeiro lugar, o governo colombiano não teve exatamente uma iniciativa de paz. Foi uma conquista das forças revolucionárias. Temos 35 anos de luta armada, que tem sido um avanço permanente. Quando Pastrana era candidato, ele se comprometeu com os guerrilheiros a buscar a paz na procura de uma saída política ao conflito social e armado. O presidente acha que com as Farc a conversa é mais fácil, já que é uma discussão de comissões especializadas. Ele também foi convencido por assessores de que nós éramos gatos pingados. Mas nós do ELN acreditamos que um diálogo com o governo passa pela convocação de uma convenção nacional, onde o povo organizado em sindicatos e associações possa expressar suas reivindicações. Pastrana percebeu que isso era muito mais perigoso para ele. Em 1991, tivemos uma tentativa de diálogo com o governo. Mas o então presidente César Gavíria abandonou as negociações e decidiu resolver a questão à bala. Aprendemos que a falta de pressão popular foi fundamental para o fracasso daquelas negociações. Os companheiros das Farc acham que é possível o tipo de negociações proposto por Pastrana; não brigamos, mas acreditamos que é uma conversa de cúpula. Para o governo colombiano, é uma situação de impasse: ele não pode cumprir as metas traçadas pelo FMI ao mesmo tempo que atende às exigências das Farc. E, se o povo não estiver organizado, o governo ficará novamente com o FMI. Por isso, nossa proposta irá complementar esse processo das Farc.

ISTOÉ – Vocês contemplam a hipótese de chegar ao poder pelas urnas?

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Bernardes – Não. A via eleitoral, como dizia o padre Camilo Torres, é ganha por quem está no poder. Quem tem o dinheiro, quem tem as empresas é quem elege. Isso não é democracia. Para nós, democracia não existiu na América Latina. Estamos num processo de construção democrática. O esquema que a guerrilha salvadorenha adotou não funciona. Tem que acontecer o que aconteceu lá sem termos que entregar as armas, sem termos que desmanchar nossas estruturas militares. Elas têm que fazer parte dos organismos de defesa da soberania nacional quando ocorrer a virada. Esse processo, que deve demorar dez, vinte anos, vai formar os quadros do povo para construir o poder popular na Colômbia.

ISTOÉ – O que significa formar os quadros do povo?

Bernardes – A vocação do poder é do povo. Nós somos militares, nossa vocação é a guerra; é isso que sabemos fazer. Não vamos ser bons governantes. Creio que o exemplo da Nicarágua demonstra um pouco isso. Os comandantes sandinistas foram para os ministérios e deu no que deu: não conseguiram administrar nada. Para isso, é necessário profissionalismo. E os profissionais da política se fazem fazendo política, mas numa dimensão mais ampla, participativa.

ISTOÉ – Uma iniciativa como o Mercosul pode significar um contraponto à hegemonia econômica dos EUA na América Latina?

Bernardes
– De nenhuma maneira. Quando se implementou o Nafta (Acordo de Livre Comércio entre EUA, Canadá e México), em 1994, foi um alarme tão grande para os pequenos que surgiu o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Os oprimidos mostraram que não estavam dispostos a morrer de graça. Achamos que o Mercosul é uma aliança dos grandes que põe em risco e mata os pequenos, assim como o Nafta. Infelizmente, aqui não surgiu nada parecido como o EZLN para mostrar que este é um caminho errado. O Mercosul é um instrumento do neoliberalismo; não é um contraponto ao Nafta. As brigas entre eles são como as brigas dos narcotraficantes no Rio pelo controle de áreas; são brigas pelo mercado.


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